diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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Teoria do inutensílio, carta endereçada a um único leitor chamado Ninguém, “O artista inconfessável” é um poema do Museu de tudo (1975) de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), o volume único dos anos setenta, sucedido pela antologia Poesia crítica (1982) realizada pelo próprio poeta.
Diz o poema:
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
“O artista inconfessável” não tem, portanto, substância nem casca, é a encarnação do paradoxo, do vazio da linguagem –é o branco no branco em ato. No movimento que vai da utilidade do inútil ao desdém do artista crítico, ao leitor nenhum e ao alvo nada, o poema subscreve uma teoria e prática do inutensílio mais radical do que viria a ser nas mãos de Paulo Leminski, seu suposto e meritório criador, já que –como se vê nesse mesmo poema– se trata de teoria e prática simultâneas nas mãos do escritor pernambucano. Ninguém, esse leitor, é todo mundo, imagem hoje eficaz do universo virtual, de seus leitores e usuários, mais ou menos hipócritas, mais ou menos fraternos, que são todo mundo e ninguém: o paradoxo não só é permitido como se impõe a partir do próprio poema. E, no entanto, ele é inconfessável e tal adjetivo, embora admita uma paleta ampla de sentidos, é neste caso muito preciso, é como um pico na veia: é inconfessável, ou seja, é impossível, dobra o cabo das possibilidades de significação via palavra a escritura do poeta da educação pela pedra, com sua obra edificada sobre duas “águas”, a primeira sendo a do poema crítico e autocrítico e a segunda aquela de extração documentária “para as massas”.
Presumivelmente estas últimas –as massas– também são o alvo de uma antologia póstuma de João Cabral, feita portanto à sua revelia, e intitulada precisamente O artista inconfessável (Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2007). Todo artista, todo poeta é profanável, embora não se possa dizer o mesmo de quem o lê. O conceito tradicional e religioso de profanação supõe o ultrapassamento de uma fronteira perigosa, a fronteira do sagrado, que vem a ser o sentido que Giorgio Agamben tratou de reconfigurar no presente enquanto retorno ao uso comum daquilo que lhe é negado. A profanação do título deste texto refere-se, no entanto, à profanação figurada, à apropriação indébita mas já corriqueira da vida-obra de santos-artistas. No que respeita a este volume de poesia de João Cabral de Melo Neto, se trata de uma profanação post mortem, quando se torna viável fazer de um nome e de uma obra o que se quiser –o fator Borges nas mãos de Kodama (que dama!) é modelar a esse respeito, quer dizer, molda um comportamento no mínimo duvidoso relacionado ao legado artístico.
Surfando o tubo do (auto)biografismo, das letras corpo 20 e da fotografia fotografada, a cineasta Inez Cabral concebe o volume de poemas de seu pai como a exposição de suas vísceras poético-biográficas sem o menor pudor. Ainda que vá ficar para sempre sem resposta a pergunta sobre a reação de Cabral sobre tais usos de sua poesia e sobre qual seria a sua posição atual em relação à fronteira público-privado, conforme o debate do momento no Brasil envolvendo estrelas cadentes da Jovem Guarda, do Tropicalismo e do Congresso Nacional, insisto em colocá-la aqui.
O artista inconfessável seria, nesta antologia póstuma, um artista confesso. Quem usou esta segunda designação foi o poeta Régis Bonvicino, que celebrou em resenha a chegada da antologia de Cabral pelas lentes da filha Inez. O volume pretenderia afastar o poeta dos vícios das leituras de linhagem estruturalista de sua obra, basicamente da leitura de Luiz Costa Lima, segundo ele. São categoricamente limados da bibliografia do livro, se não o próprio Costa Lima, os sobrenomes dos irmãos Campos, cuja relação com Cabral foi estreita e gerou uma auto-antologia como a Poesia crítica mencionada no início, aquela que o poeta elegeu segundo a própria vontade. Esta relação produtiva é tão inegável quanto aquela de Murilo Mendes com o concretismo nas suas duas últimas décadas de vida, os anos sessenta e setenta. É isso que Bonvincino faz questão de negar, usando para tal fim a prancha de surfe multimediática de Inez Cabral. Para ele, “a mensagem é clara: leia João Cabral, e não seus críticos”.
Visto confessamente por Bonvicino como “clara autobiografia linear”, o livro superaria qualquer outro da poesia brasileira do passado e do presente em função de ser constituído de poemas de João Cabral, o que é apenas uma generalização. A linearidade da antologia se deveria ao fato de ter sido dividida em cinco seções, que vão da “Infância e juventude”, às “Viagens” e a “Sevilha, Espanha” e “Recife, Pernambuco”, para terminar no “Retrato do artista”, cujo último poema é “O postigo”, o epitáfio de Agrestes (1985). O espectro ou o semblante do escritor é impedido, assim, de entrar em cena através de sua obra, como o fez um dia Machado de Assis. Conclui-se, portanto, que a lição não foi aprendida, nem a lição da pedra nem a lição da água. A própria conclusão da resenha de Bonvicino escancara esta incompreensão, quando faz o elogio do poema reproduzido no início deste texto, para em seguida associar o verso “mais vale o inútil do fazer” ao que seria uma exposição da “condição permanente do brasileiro, sucateado pela corrupção governamental, por uma oposição de gabinete, por um serviço público imprestável e que, no entanto, insiste no ‘inútil do fazer’”. Se são estas as lentes estreitas e redutoras, além de supostamente politizadas, as empregadas pelo poeta paulista contemporâneo que lê o poeta brasileiro consagrado para enunciar o comentário infeliz, o que dizer daquelas que comemoram o aparecimento de uma “autobiografia linear” em nome do que seria uma renovação da leitura da obra de Cabral, agora pretensamente mais limpo e mais cristalino do que nunca. Contudo, o certo é que, se todo artista consagrado é especialmente profanável pelos pósteros, sejam eles próximos ou distantes, certos pósteros jamais merecerão –pelo bem ou pelo mal– tal distinção.
(Actualización noviembre – diciembre 2013. enero – febrero 2014/ BazarAmericano)