diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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Foi neste momento então que eu deveria ter dito
o que hoje
porém
seria ridículo dizerAna Martins Marques
Eu fui pra Uberlândia
morar com a Maria
a coisa se desfez e eu
desfuiCarlos G.
O livro do bebê – Dou de novo com ele, procurando pelo livro do Édison Carneiro sobre Palmares, e me detenho em algumas fotos: Haydée com 3 anos, toda arrumada, sentada sobre uma almofada, de laço de fita no cabelo bem penteado, vestido e sapatinho de boneca; com o pai José, 1º de abril de 1932, em Campo Grande, na casa de tia Clélia; com a avó materna, Isabel Eugênia do Amaral Guimarães, a Sinhazinha; com os avós paternos, os Gonçalves, Antônio José e Maria Candida (Dona Micota); e também no relato escrito a mão (por Sinhazinha que escreve e data a dedicatória? Por José? Por ambos?): “Haydée sahiu de Alegrete no dia 25 de março de 1929, precisamente no dia em que completara 7 meses, foi forçada a isto por ter sido seu pae transferido para o Rio de Janeiro. Chegou a esta última cidade no dia 6 de abril do mesmo ano e foi residir com sua avó, na rua Frei Caneca, 137. // No dia 25 de junho de 1932, tendo a vovó dindinha que se mudar, foi Haydée residir na rua Barão de Petrópolis 45 casa 15. // Um ano depois, em 27 de junho de 1933, por conveniência da vovó foi Haydée residir na rua Riachuelo 377 sob. // No dia 7 de maio, Haydée embarcou com os paes para Curitiba, por ter o papae sido transferido para o 5º Regimento de Aviação; depois de passar 5 dias em São Paulo, seguiu destino a Curitiba onde chegou no dia 13 de maio indo residir no Metropol hotel.” A segunda página, manuscrita, divide o espaço com um poema de Humberto de Campos, Os olhos de minha filha. O Livro do Bebê, comprado para o nascimento de Haydée, em 1928, é uma edição da Livraria do Globo, de Porto Alegre (1927), assinada por Mansueto Bernardi. Fundador e diretor da Revista Globo, administrador da Livraria do Globo, Bernardi foi político, prefeito de São Leopoldo (1919-1923), amigo de Getúlio e integralista, preso pelo Estado Novo em 1938. Nascido na região do Vêneto em 1888, morreu em Veranópolis, cego, em 1966.
Papéis do Denis – Transplante, 4º Pós Operatório: “Minha irmã vem me ver sempre e espicha os lábios num beijo mudo (estou isolado). Meu gesto é o mesmo e os olhares falam mais que as palavras” (São Paulo, 19 de janeiro de 1975) – escrito em um caderno de capa dura em que copiava poemas e que tem sua assinatura na primeira página e a data de 3/4/74.
Cultura e Barbárie – Samba na Antonieta, encontro Marina e Rô. Passamos depois na casa da Marina e de lá saio com 10 livros: diários de viagem, de Isabelle Eberhardt alias Mahamoud (Marcelo me informa que há uma edição também da Fósforo); Filosofias Africanas, de Séverine Kodjo-Grandvaux; dois de Sony Labou-Tansi traduzidos por Takashi Wakamatsu (figura singularíssima que se transferiu de uma casa sem paredes no Canto da Lagoa pra um sítio a 50 minutos de Manaus e que um dia nos anos 90 deixamos trancado no carro na entrada da casa dos pais do Chico Saraiva. Tradutor genial, morreu subitamente vitimado por um aneurisma), o ato de respirar e tinta, suor, saliva e sangue; a vida dos outros e a minha, de Claudia Cavalcanti (que tem a ver com a Alemanha); filosofia primeira / tratado de ucronia pós-metafísica, de Fabián Ludueña Romandini; e outra tradução selvagem de Takashi, Megangelho / A verdadeira criação do ser humano / A ressurreição dos mortos / Todos os mistérios explicados, de Jean-Pierre Brisset. Todos, a cara da Marina (o cuidado na edição) e do Fê (o cuidado selvagem com as palavras), aliás, companheiro de viagem de Takashi. Saravá!
Entrou na roda – Chico Saraiva junta sua viola machete ao violão de sete cordas, ao cavaquinho, ao surdo, cuíca, pandeiro, tamborins e reco-reco e às vozes de Julia e Jandira. Multicolorido entardecer na rua Vitor Meireles em frente à escola-há-15-anos-abandonada Antonieta de Barros, que antes tinha o nome do assassino de índios Dias Velho, aliás, fundador da cidade de Nossa Senhora do Desterro no século XVII. Oi nós!
No país das areias – “Esta é a melhor hora, a hora maravilhosa na África, quando o grande sol de fogo vai, enfim, desaparecendo, deixando que a terra repouse na sombra azul da noite. Do alto dessa duna, descortina-se todo o vale de El Oued, que parece conter as ondas sonolentas do grande oceano de areia cinza.” (diários de viagem, Isabelle Eberhardt)
Fantasmas de família – Fotografo para poder ampliar e ver com detalhes o rosto, a expressão, de Isabel, a Sinhazinha, mãe de Odette, com a neta no colo, em Campo Grande, na casa de “tia Clélia”, em 10 de maio de 1932 (a foto é do Livro do Bebê). No apelido (na verdade, uma forma empregada pelos escravizados para se referir à filha da senhora, a Sinhá), ainda ecos do século XIX, das relações entre senhores e escravizados na fazenda Santa Fé, de café, em Campos dos Goytacazes; no rosto, os olhos fundos, bem abertos, olhando pra câmera, contrastam com o sorriso discreto, apenas insinuado nos lábios; os cabelos brancos estão cortados abaixo da orelha, o vestido escuro com detalhes em branco faz ressaltar Haydée (4 anos) com uma roupinha clara, sandálias, sorriso largo, os cabelos curtos, bem cortados e as pernas abertas no colo da vó Dindinha que segura-lhe ambas as mãos. A imagem bem poderia ser uma alegoria do Brasil, aquele das fazendas e trabalho escravo e o outro, atormentado pelos golpes militares, esse país dos anos 30, de Getúlio, das massas, da guerra, do início da industrialização, dos embates entre comunistas e integralistas. Nos olhos de Sinhazinha quantas histórias sinistras na Fazenda Santa Fé? Nos de Haydée, toda a força de uma vida que começa e que iria atravessar duas ditaduras: o Estado Novo (e o suicídio de José) e a ditadura militar de 1964.
Papéis do Denis – Carta à mãe Noêmia depois do transplante do rim dela para ele, sem data; 1973 ou 1974? “Querida Kaduca // Estou muito contente de saber que a senhora vai tão bem quanto eu. // O seu corte tem doído muito? É assim mesmo. Quero que se restabeleça logo para poder vê-la. Pena que a senhora não pode entrar, mas como já se passaram dois dias vai acabar logo. // Eu sinto um pouco de dor, é natural e está sangrando um pouco. Já comerei com o líquido e hoje no almoço já comi carne. Desde de manhã já levantei e evacuei; a sonda incomoda, não é? // Quero que fiquemos logo restabelecidos e falando nisso, obrigado pelo seu rim que já está minando. // Do seu filho que a ama muito // Denis // PS: Se puder responda.
Inverno na Ilha – A pitangueira está toda florida e recebe visita todos os dias dos passarinhos. Também a camélia se encheu de flores que recolho cotidianamente quando caem (“Foi a camélia que caiu do galho / deu dois suspiros / e depois morreu”) pra enfeitar a casa. Hoje, o vento sul voltou forte, depois de um dia de veranico (26 graus). Saravá!
E no entanto – “E o homem Jorge de Lima não interessa como tragédia”. (...) “Teve, na vida, uma, talvez, duas crises morais”. (...) “Nunca se excedeu; nunca foi polêmico; nunca se destemperou” (Povina Cavalcanti, Vida e Obra de Jorge de Lima).
O nome Denis – A foto em formato quadrado, em preto e branco, parece mais velha do que é (embaixo e atrás tem a data: 23/03/1975). As três pessoas, Denis, à esquerda, magro e alto, num dos raros momentos fora do Hospital das Clínicas, Sara, no meio, e Denise, à direita, posam com roupas que denunciam a época: calça boca-de-sino. Mais pra esquerda, vê-se o cotovelo e uma nesga da perna de alguém que não deveria estar ali; à direita, uma janela que dá pra outra janela, uma mesa, um pedaço de cadeira. Sara, a vó, mãe de Noêmia, era uma judia de Istambul, que falava um portunhol engraçado, cozinhava super bem e tinha uma enorme força de vida – quando a conheci, morava na Lapa, perto da Cruz Vermelha, não longe de onde hoje mora seu bisneto Heitor. Vivíamos em plena ditadura – Herzog havia sido assassinado em outubro de 1975 nas masmorras do DOI-CODI de São Paulo – eu fazia o primeiro ano de Jornalismo numa pequena faculdade em Jacarepaguá na rua Albano que um dia havia escondido Luiz Carlos Prestes (que acabou preso em 5 de março de 1936, no Méier, depois de viver na clandestinidade desde abril de 1935; sua localização foi descoberta através da tortura de vários membros do PCB).
A coisa-máquina – Há dias brigando com o som (amplificador, mesa, microfone), resolvo trazer da casa da Marina um Marshall. Ligo meu Godin nele e sai um som horrível de guitarra distorcida. Tento com o meu e, surpresa, funciona. De qualquer forma, me sinto insatisfeito com o som que sai, apesar do gostoso que é cantar no microfone. É preciso regular, mexer nos botõezinhos; perco a paciência.
Tempo de viagem – Ana Paula me avisa que Raquel está alugando o apê de Salvador (ela tá no México com uma bolsa-sanduíche do doutorado). Converso com ela e resultado: vou pra Salvador por um mês e, na volta, passo dois dias na ilha e embarco pra fazer o trajeto União dos Palmares, Caruaru, Garanhuns, Palmeira dos Índios e Pedra (Delmiro Gouveia) com Aline. Raquel é da geografia, de Sampa, amiga da Aline, profa de geo na Tapera, aqui na ilha, e parceira na viagem pra Serra da Barriga, do Heitor; e passou um bom verão aqui em casa. Fuxico no gugou, ou melhor, no vaipatovai, a cara da rua Areal de Baixo, no bairro Dois de Julho, perto do centro, não muito longe, a pé, do elevador Lacerda. Da janela do apê no décimo andar, vê-se a Baía de Todos os Santos. Saravá!
Preparação da viagem – “Muitos engenhos estão instalados no Recôncavo, a planície fértil que rodeia a baía de Todos os Santos. Para ir à Bahia e voltar de lá, é preciso tomar a via marítima. Os engenhos têm suas frotas de saveiros, veleiros de forma particular desta região, para transportar as caixas de açúcar e os tonéis de cachaça, prontos para embarcar. ´Estas viagens são cheias de charme, escreve Wanderley Pinho. O veleiro grande inclina-se com graça ao sopro do Nordeste que lhe enche os três panos enfunados. A hora é boa; a luz da tarde que começa doura e destaca a paisagem entre sombras e tons do sol oblíquo que se inclina ao poente´. O autor vai descrevendo ´a cidade que vai pouco a pouco distanciando, diminuindo´, as ilhas de Itaparica, dos Frades, Madre de Deus que ´bóiam na baía larga´ enquanto ´a costa vai desenrolando grupos de casarios e capelas alvas; as fumaças brancas bagaceiras de engenhos; canaviais nas encostas e bananais bulindo à viração´ deixando atrás Plataforma, Praia Grande, Estrada e Toque-Toque, até Freguesia, Cabôto, Jacarecanga, Restinga e Passé... avista-se enfim, o cais do engenho de São Paulo´”. (Pierre Verger, Notícias da Bahia 1850)
Brilho da tarde – Com o pequeno binóculo, espio o bem-te-vi nos últimos galhos da embaúba seca. O sol da tarde bate quase reto em seu corpo e o brilho de sua plumagem amarela entra pelas lentes, por meus olhos adentro. De costas pra mim, ele canta.
Visto assim do alto – No gugou ãrse, localizo o prédio alto pintado de branco e descendo dos céus paro na rua Areal de Baixo em frente ao Condomínio Nossa Senhora de Lourdes, a entrada toda protegida por grades. Vou seguindo a rua estreita de costas para o mar até a Praça General Inocêncio Galvão e o Largo Dois de Julho (dia da Vitória dos baianos sobre os portugueses em 1823). Aí tem uma feira e logo abaixo, na rua Jaqueira do Unhão, uma padaria e um restaurante; na esquina, a rua Areal de Cima. Vejo que tem uma estação do metrô no bairro, Lapa: 20 minutos a pé da estação até a rua Areal de Baixo. Tem que descer a Avenida Vale do Tororó, pegar a Professor França, a General Labatut (mercenário francês que lutou com os baianos pela independência), a Conselheiro Junqueira Ayres, que passa em frente às lojas Americanas e ao Gabinete Português de Leitura, a Praça da Piedade, a Sete de Setembro que me leva à rua da Forca (por onde passavam os prisioneiros que seriam enforcados na Praça da Piedade) que dá no Largo Dois de Julho, e daí à rua Jaqueira do Unhão (a continuação é a rua do Cabeça onde havia matadouros e se expunha a cabeça dos bois mortos) e, pronto, cheguei.
Preparação da viagem – “De súbito, após uma curva, a serra da Barriga me apareceu, suavemente azulada e grávida, contra o claríssimo céu equatorial. Há milhões de anos ela está lá, pensei; e nossa pobre memória só alcança o que ocorreu há trezentos e poucos.” (Joel Rufino dos Santos, Zumbi, 1985)
Inverno na Ilha – Chove há dois dias, chuva fina, deixando tudo molhado e as aracuãs inquietas. Dias de papo com Ana Paula, leituras e violão. Saravá!
Voz do quilombo – “Os pássaros nos avisavam se ia chover, se ia ter sol ou se o céu ficaria nublado. Informado por eles, ainda antes de me levantar, eu já tinha a noção de como seria o dia. Outro pulsar das memórias de criança é o caminho da roça, que fazíamos junto às gerações mais velhas, a geração mãe e a geração avó. Ouvíamos a sonoridade emitida pela mata, a partir do movimento do vento e das águas dos riachos, rios e das cachoeiras, dependendo de por onde passávamos. / No caminho da roça, os pássaros continuavam com suas cantigas, comemorando a fartura que haviam encontrado ao colher os frutos das árvores. Eles também nos contavam sobre outras vidas que passavam por perto naquele momento...” (Antonio Bispo dos Santos, A terra dá, a terra quer)
Inverno na Ilha – Manhã fria de domingo com aquele vento sul, já mais de 8h30min e só um bem-te-vi atrevido canta no alto da embaúba. Falo com a cuidadora e Haydée novamente teve uma noite ruim. Acordou às 23h30min e só voltou a dormir às 3h da manhã; tava confusa, desnorteada, precisando de colo. Na sexta, corri pra lá, pois estava ansiosa, quase chorando; fomos ao shopping, tomamos sorvete, caminhamos, cantamos juntos trechos de “Palpite infeliz”, de Noel, e ela sabia a letra.
Fuxico pra Três vidas – Na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, checo o nome de João Ferreira do Amaral, avô de Odette, bisavô de Haydée, pai de Isabel Eugênia, a Sinhazinha, vovó dindinha; busco o jornal, Monitor Campista, e seleciono 1870 a 79, e aparece, por exemplo, listado entre os nomes que contribuíram para socorrer as vítimas das inundações em Portugal (janeiro de 1877), mas também como referência ou local para entrega de escravos fugitivos, como por exemplo: “100$000 reis / Por cada um / Fugiu da Fazenda da Criméia, município de São Fidélis, freguesia de Monte Verde, os escravos seguintes: Domiciano, pardo, baixo, fala descansada, idade 40 anos, costuma fugir para as imediações de Campos. / Dionizio, pardo, baixo, 28 a 30 anos, barbado, cabellos pretos e um pouco anelados e encarapinhados, é natural de Saquarema ou Capivary e dirige-se a Campos. Gratifica-se com a quantia acima a quem os prender e levar à dita fazenda, ou em Campos, ao Amaro selleiro ou capitão Monteiro; no porto do Cardoso, a João Ferreira do Amaral...” Aparece ainda em um anúncio de aluguel de escravos: “João Ferreira do Amaral precisa alugar 4 escravos possantes, para o trabalho de seu armazém de receber café, no Muriahé; informações tratar com os Srs Emilio Feydit e Joaquim Fortunato”. Em uma coluna intitulada Parte policial: Foram recolhidos à cadeia desta cidade: / dia 19 – Francisco, escravo de João Ferreira do Amaral, por andar fora de horas, à mesma ordem e solto no mesmo dia”. E já mais próximos da Abolição: Machinismos de café / Baratíssimos / Constando de 2 brunidores, 2 ventiladores, de Rocha Passos, com elevadores, 1 ventilador de novo systema para separar pedras e paus do café, com elevador, um moinho de pedra, baratinho, para socar café, quebrar o grão, tendo elevador e ventilador ´Lidgerwood´ polias e transmissões, obras feitas a capricho pelo perfeito artista Bernardino Candido de Figueiredo; para ver e tratar com João Ferreira do Amaral, no Muriahé”. Em 1875, Campos dos Goytacazes tinha 245 engenhos, 3.610 fazendeiros; em 1881, havia 89 mil habitantes, sendo 57 mil livres e 32 mil escravos, quase 4 mil deles ainda nascidos na África. João Ferreira do Amaral nasceu em 1829, provavelmente perto do Porto, nos Portugais.
Sushi com Joca – Já viu o documentário-show do Emicida, AmarElo? Não. Já ouviu Ticia e seu Saltcity, BaianaSystem? Não. Sabe o que é o pagotrap? Guedez? Anoto pra checar no iutubi.
Paisagem de Turner – Minha companheira de viagem Aline me manda o quadro de Willam Turner, Slavers throwing Overboard the Dead and Dying, Typhoon coming on ou Mercadores de escravos jogando no mar os mortos e os moribundos, tufão se aproxima, de 1840, que está no Museum of Fine Arts, de Boston. A paisagem de Turner, desta vez, apenas nos ilude em um primeiro momento em que ficamos tocados pelas cores, pelo sol se pondo, pelas imagens pouco nítidas, pelo mar revolto; logo percebemos o horror: pernas, braços, gaivotas, grilhões e o vermelho que não é só do entardecer e sim do sangue. A beleza da paisagem se revela como um soco no estômago.
Descrição do quadro – “Mas creio que o mais sublime mar que Turner pintou e, sendo assim, certamente o mais sublime jamais pintado por alguém, é o de O navio negreiro (The Slaver Ship), a mais importante pintura da exibição de 1840 da Academia. É um pôr-do-sol no Atlântico após uma prolongada tormenta; mas a tempestade já parcialmente se acalmou e as nuvens de chuva fluem fragmentadas em linhas escarlates que se perdem na escuridão da noite. Toda a superfície do mar incluída na imagem está dividida em duas margens de enorme agitação, que vem não do alto, nem do lugar, mas de uma profunda e ampla palpitação de todo o oceano, como a elevação de seu seio por uma respiração funda depois da tortura causada pela tormenta. Entre essas duas margens, o fogo do pôr-do-sol se conforma no entremeio das ondas tingindo-o com uma luz terrível e gloriosa, o esplendor intenso e sombrio que queima como ouro e lava como sangue. Ao longo dessa via e vale inflamados, as ondas inquietas que dividem turbulentamente a agitação do mar elevam-se em formas sombrias, fantásticas e indefinidas, cada uma derramando atrás de si uma sombra ao longo das espumas brilhantes. Elas não aparecem por toda parte, mas duas ou três juntas em grupos selvagens, caprichosa e furiosamente, como se a força que vem do fundo dessa agitação as impelisse ou admitisse, deixando entre elas espaços insidiosos da água em torvelinho, ora iluminadas por um fogo verde e semelhante à lâmpada, ora refletindo o dourado do sol poente, ora terrivelmente tingidas de cima por imagens incertas de nuvens em chamas que caem sobre elas em flocos carmesim e escarlate e dão às ondas temerárias a força adicional de seu próprio vôo impetuoso. Violeta e azul, as sombras lúgubres das ondas tubulares são lançadas sobre a névoa noturna que reúne o frio e o profundo, avançando como a sombra da morte sobre o navio culpado enquanto representa no céu o horror e mistura sua torrente inflamada com a luz do sol – lançando para longe o ímpeto desolado das ondas sepulcrais, encarnando o mar extenso. / Acho que se eu tivesse que reduzir a imortalidade de Turner a apenas uma única obra, escolheria esta. Sua ousada concepção – idealista na mais alta acepção da palavra – está baseada na mais pura verdade, forjada no conhecimento mais consolidado da vida; sua cor é absolutamente perfeita, nenhum tom falso ou mórbido em algum lugar ou linha e de tal forma modelado que cada centímetro quadrado da tela é uma composição perfeita; seu desenho tão correto quanto destemido; o navio leve, inclinado e cheio de movimento; as tonalidades tão verdadeiras quanto maravilhosas; e a totalidade da imagem dedicada ao mais sublime dos temas e impressões – completando então o sistema perfeito de toda verdade, que mostramos estar formado pelos trabalhos de Turner) – a força, a majestade e a mortalidade do Mar aberto, profundo e ilimitado.” (John Ruskin, em Modern Painters; vale lembrar que Ruskin ganhou o quadro de Turner de seu pai)
Em Salvador – Da janela, vê-se o Elevador Lacerda, a Praça Castro Alves, a casa de Betânia, a Baía de Todos os Santos. Saravá!
(Actualización septiembre – noviembre 2023/ BazarAmericano)