diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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Clara fonte de luz
certa pérola d’água
afluente da mama
filha de IbirapuitãCarlos G.
Tú me recompensas con una tibia lluvia de tus entrañas
Cristina Peri Rossi
Estranhou o quê?
Preto pode ter o mesmo que vocêMoacyr Luz
Afeto vegetal – Dia quente de outono e aproveitamos, eu, H e Ana, pra ir comer peixe na Ponta de Baixo, São José, aqui do ladinho da ilha. Terça-feira, somos os primeiros a chegar ao Delícias do Mar, quase na areia. H se deleita com uma taça de vinho, aquela moqueca de côngrio, o mar diante dos olhos, as pedras pousadas na água. Como se não bastasse, depois do almoço vamos a Coqueiros numa casa que vende bonsais que vi na internet. Outra surpresa: o Paulo Roberto Schweizer, com quem já tinha falado no telefone para saber se estaria aberto, me abre a casa cheia de bonsais (um de 43 anos), passarinhos, caixas de abelha e uma conversa longa, sem pressa. Descendente de suíços-alemães de Alfredo Wagner, aqui na serra, a uma hora da ilha (bem onde a gaúcha tem um sítio), Paulo fala das árvores, de como lidar com elas, dar forma, algumas meio grandinhas, com troncos que fazem curvas, ramos bem visíveis formando uma rede (é preciso olhar de baixo pra cima pra ver a trama); das abelhas, do cuidado e da atenção, do prazer de fazer as caixas pra elas. O papo corre fácil. Outono na Ilha, mas parece verão.
Ho Chi Minh no Rio – Lendo a biografia do líder vietnamita, de Jean Lacouture, lembro de uma passagem dele pelo Rio. Vou checar e lá está: quando era cozinheiro do navio La Touche-Tréville, Ho, que então se chamava Ba, foi abandonado no porto do Rio, em 1912, por haver contraído uma doença desconhecida. Trabalhou em um restaurante na Lapa, morou em Santa Tereza (onde morei nos anos 80) e conheceu o líder sindicalista José Leandro, o Pernambuco. Ficou três meses na cidade. Sobre o sindicalista negro escreveu um artigo – “Solidariedade de classe” – em 1924 narrando os fatos da greve no porto e a repressão policial em 1921, provavelmente contados por Astrojildo Pereira, fundador do Partido Comunista Brasileiro, a quem conheceu em Moscou. Saravá!
Afeto matinal – De manhãzinha, me sento na frente de casa com meu pequeno binóculo para ver o amanhecer e o espetáculo que fazem os pássaros. Com ele, me aproximo dos amiguinhos sem incomodá-los e posso ver seus movimentos rápidos de cabeça, a forma de seus bicos, como coçam o corpo e a cabeça, como ocupam o território, cantando e passando de árvore em árvore e também parando por momentos nos fios de eletricidade.
Estradas do sul – A caminho da Banda Oriental, paramos na Estação Ecológica do Taim, uma área de quase 11 mil hectares nos municípios de Rio Grande e Santa Vitória do Palmar. Munido do pequeno binóculo que comprei no Camelódromo, observo os pássaros – anhuma (o macho parado protege a fêmea e os filhotes), ximango (achamos que era um gavião, mas é uma ave de rapina, linda), maçarico-preto, garça-moura, socozinho, biguá, etc – as capivaras, os jacarés. Uma riqueza de inundar os olhos. Saravá, Taim! Saravá, banhado!
Monte VI de Este a Oeste – Na livraria Más Puro Verso, na rua principal da Ciudad Vieja, Sarandí, pergunto onde posso encontrar poesia uruguaia. Com um gesto dos braços, um senhor de cabelos brancos me diz: Em toda parte.
Xadrez da política – Sentado na casa de Lylian, na Calle Florencio Sanchez, Pocitos, com a lareira acesa, escuto notícias do Brasil. O homem de Garanhuns, com a paciência de um chinês (e também, por que não?, do mestre Ho Chi Minh), move seus peões.
Dar ouvidos – Da última visita à Francis, em março, ficou a impressão de sua grande capacidade narrativa. Pude ouvi-la sentado na cama de seu pequeno quarto e observar os vários recursos narrativos que seduzem aquele que ouve, durante os dois dias em que fiquei em Guará. Assim, me contou da morte de sua mãe, Maria Rosa, e de sua vida na roça, na montanha, tirando tarefa na enxada, expressão que ela usou e fez questão de destacar e explicar. Dar o tempo, dar ouvidos, absorver a força do outro, a beleza do outro, para crescer, como no judô. Como as plantas. Saravá! (Enquanto espero para ir à festa de Xangô no terreiro perto da casa do Joca, no Campeche. É, candomblé no Campeche, o melhor antídoto à caretice catarina. Estranhou o quê?)
Dar ouvidos 1 – Moacyr Luz cantando no Samba do Trabalhador: “Estranhou o quê? / Preto pode ter o mesmo que você (bis) / Preto pega surf, pega praia / preto pega jacaré // Preto vê vitrine, olha o magazine / compra se quiser // Preto põe sapato, usa pé de pato / porque tem os pés // Come sashimi, bebe champanhe / e também tem rolex // Estranhou o quê? / Preto pode ter o mesmo que você (bis)”. É Moacyr, no Samba do Trabalhador. Saravá, irmão!
Ouvidos moucos – Jorge não sambava, era católico demais pra rebolar. Via os pretos (as pretas) de longe, como num enquadramento; José também não sambava, era muito “alemão” pra sambar. Haydée sambava, embora fosse muito classe média branca carioca pra ir ao candomblé; Francisca não sambava, era da roça, também muito católica, mas com os dedos fazia o cavaquinho soar como uma viola, e, assim, no fundo, sambava apesar do pudor. Ouvidos moucos quer dizer aqueles que não têm o sentido da audição muito apurado, que não ouvem, surdos, do aramaico Malka pelo latim Malchus, nome de um dos soldados que prenderam Cristo e a quem Pedro cortou uma orelha, diz o Caldas Aulete. Jorge não sambava, havia escrito aquele livro racista, era por demais católico, sangrava dos olhos. Saravá!
Peri Rossi – “Lendo o dicionário / encontrei uma palavra nova:/ com gosto, com sarcasmo, a pronuncio; / apalpo, apalavro, manto, calco, pulso, / digo, encerro, lambo, toco com a gema dos / dedos, / tomo-lhe o peso, molho, aqueço-a entre as mãos, / acaricio, conto coisas pra ela, cerco, encurralo, / cravo um alfinete nela, encho-a de espuma, // depois, como a uma puta, / mando embora de casa”
Fruto uruguaio – Dia 10 de junho, um sábado de veranico, vejo o dia amanhecer, cuido das plantas e lá está: a primeira semente vinda de Montevideo aparece no vaso. Dia de samba na Antonieta: “Dói, dói, dói, dói, dói / um amor faz sofrer / Dois amor faz chorar (Dói, dói)”.
Chiyo-ni (1703-1775) – Sem o seu / grito / eu não / distingo a / garça / manhã de / neve // Poeta japonesa da era Edo (1603-1867) traduzida por Guilherme Gontijo Flores
Francisca conta – Doze vara d’ um lado, doze vara do outro, intera quadra, chama tarefa aí pra gente trabalhar, limpar, limpar mantimento, plantar milho, feijão, as planta, né? Tirar o mato, virar a terra, aterrar as plantas todas, se não, não sai; plantar abóbora, tudo, e depois limpar arroz, mas meu pai não plantava arroz, não, outra pessoa plantava e eu ia ajudar. Cumpade João Alves, não sei se ‘inda é vivo, o pai da Maria Chiquita, esse apelido Maria Chiquita, sabe? Eu nem tenho o telefone dela, se não ligava pra ela, não tenho como falar com ela, ela ficou viúva, né? Ah, meu Deus do céu! E era arroz molhado? Não, o arroz era no seco. A colheita do arroz é que é ruim. Quando ta maduro, cresce e fica alto, tem muito cacho assim, aí pra você cortar o arroz, pra você bater o arroz, lá nós fazia assim, quem planta bastante tem máquina, né? Aí é feito na máquina, corta na máquina, tira tudo, limpa, bota pra secar. É isso aí. Mas nós, lá, cortava na mão, pegava os punhado, batia, fazia uma prateleira assim pra coar todo arroz. Ah, era um trabalho... Parece um sonho, eu fazia isso lá na casa do cumpade João Alves. Eu trabalhava pra ele, lá, ele fazia um arrozal grande, ah, só vendo, rapaz. Milho plantava? Milho plantava. Nossa! Meu pai tinha um chiqueiro assim, dos grandes, botava os porcos lá no chiqueiro, tinha porcos criado filhote, tinha porco castrado, criado solto, comia dentro de casa, ficava deitado, comendo deitado, de tão gordo que ele ficava. Aí meu pai mandava matar, quando a gente tava com o Cataviano e dividia tudo. Cataviano, nós morava lá na terra do Cataviano, não pagava nada; ele falava pro meu pai, oh Virgílio pode morar aí, não tem problema não. Quem era esse Cataviano? Era filho do Cataviano velho, morava lá perto da Pedrinha. O Cataviano velho já morreu, agora o Zequinha Cataviano, não sei, acho que ainda é vivo e tem o Mero, esposo da Dona Cida, Cataviano também. É uma família grande, sabe? Agora, nem sei se ta vivo, se ta morto. E eles tinham terra lá em cima (Pirutinga, Gomeral, na serra, a meia hora de Guará)? Tinham terra, sim. E vocês plantavam fumo também? Fumo? Meu pai era plantador de fumo. Nossa, ele fazia canteiro, tirava as mudinhas, tinha que ter terra boa. Vi muito meu pai plantar fumo e limpar o fumo, depois que chegava na época dele dar aqueles brotinho, tinha que podar pra quando dar as folhas ficar grossa. Pra depois a gente colher as folhas, botar pra murchar, fazer um andaime, pendurava tudo assim e ficava tudo murchinho, aquelas folhas amarelas. Era bastante mesmo; depois mandava pro meu vizinho, meu cunhado que era o Zé Valentim, pessoal de casa, pra destalar o fumo à noite. A minha mãe fazia bolo, fazia café pro pessoal tomar, sabe? Ficava até 11h, meia-noite, depois ia embora. Meu pai fazia pacote de fumo e era procurado; vinha um homem lá de Tocará, Francisco Soares, menino, ele comprava fumo e pagava caríssimo o fumo, rapaz. Comprava 15 pacote, meu pai fazia cada um, chama rolo, rolo de fumo, quando se ta curando ele, ta verde ainda, sai aquele mel, forte e é procurado o fumo forte. Mas é fedorento, né? O cheiro do fumo é bom, o que é mal-cheiroso é o cachimbo, o fumo é gostoso, procurado, quando o fumo é bom, é procurado, sabe?, o fumo forte.
Vem com o sonho – Haydée acorda no meio da noite, angustiada, querendo ir pra casa pois não avisou à Odette que não voltaria. Deita nos braços da Ana e soluça sem chorar propriamente, um choro seco. Diz que não cuidou direito da mãe – minha última imagem de Odette viva é justamente de Haydée cuidando dela num quarto do Hospital da Aeronáutica, na Tijuca, em 1986, pouco depois de eu ter chegado da Europa. Odette, que morreria dias depois, disse então à Haydée que Renata estava grávida: e era verdade, ninguém sabia, mas você já estava vindo. Lembra?
Ciclone extratropical – Choveu quatro dias, mas no último a chuva caiu forte. À tarde, parou o aguaceiro e a temperatura subiu até 21 graus (a semana começou com frio, lareira acesa, vinho). Saravá!
Na embaúba – Falando com a Ana no celular, percebo a presença de um pássaro médio pousado no alto da embaúba seca, nos fundos da casa. Com o binóculo vejo que é um pica-pau de cabeça amarela, de costas pra mim, olhando pra mata, o vento, por vezes, levantando sua cabeleira loura. O corpo está tomado por um marrom escuro em combinação com tons mais claros, formando uma bordadura que contrasta com a cabeça amarela. Quando se move, posso ver o bico longo e fino e o vento levantando suas penas. Ontem, foi o tucano brilhando no sol que se esforçava por aquecer a terra pouco depois das 7h da manhã. Fim de outono e uma luz... (pronuncia-se luix, com chiado no x, claro, um sotaque de pássaro). Sensacional! Arlequinal! Magistral!
Visita do bró – Marcelo, o ilustrador do Diário de Viagem, veio pra pintar o muro de casa (assim poderei ficar sentado na frente olhando pra imagem que ele fará esta semana) e traz um presente: uma plaquinha azul com a palavra Saravá. De Denise, me chegam os papéis que seu irmão Denis deixou (um amigo que morreu em novembro de 1976, no Hospital das Clínicas de São Paulo, depois de três anos de sofrimento e dois transplantes de rim). O inverno começa na quarta-feira (11 graus).
Marcelo, muralista – Com a câmera do celular, acompanho Marcelo plasmando as figuras, as cabeças, na parte de dentro do muro de casa. Desde o primeiro traço com spray para grafite, que vai formando a primeira cabeça à esquerda, perto da porta de ferro que fica sempre fechada, no meio do terreno, fotografo, documento, a aparição das imagens. Antes, fomos juntos ao centro comprar material: tinta acrílica, PVA, canetinhas, sprays. Agora, do fundo branco vão surgindo as cabeças.
Na Antonieta – Sábado, caminhada na praia com o muralista Marcelo. Vemos os pescadores atarefados com montes de tainha e encontro a Lótus, ainda em recuperação. Já em casa, Marcelo trabalha em mais uma cabeça para, em seguida, corrermos pro centro a fim de pegar ainda o comércio aberto. Passamos na feira, vemos o samba na Alfândega, capoeira na Catedral e almoçamos na padaria da Hercílio Luz, na espera da roda de choro do mulheril. Curtimos o choro e lá está seu Lidinho (Lídio Augusto Costa, 77 anos), da Velha Guarda da Copa Lorde que, entre o choro e o samba, conversa conosco, assim como o hiper mega (como diz a Ana) simpático Leandro, responsável pela marcação do surdo, o coração do samba. Mediado por seu Lidinho, conheço também Jandira, uma das puxadoras do samba, que me diz que Júlia, a outra puxadora, chegaria para o segundo take. Soltamos uma pipa e o samba explode na rua. Sensacional. À espera de Júlia, damos uma volta no intervalo. Segundo take: como uma deusa, Júlia começa com um ponto que deságua em Cordeiro de Nanã, de Mateus Alegria. Todos cantam. Depois dessa suave introdução, Dói, dói, dói e ta feita a festa. Saravá!
O poeta do muro – O muralista chegou no domingo; fez o fundo branco na terça, a primeira cabeça afro, perfil virado pra esquerda, na quarta; e na quinta, a segunda, essa que parece uma máscara (uma gárgula, disse a Tita); na sexta, choveu até o fim do dia; no sábado, antes de ir pro centro, a terceira, essa que está de perfil, virada pra direita, pro portão; o domingo viu nascer a quarta, que me olha de frente; na segunda, pintou o fundo, azul índigo embaixo e azul clarinho na parte superior; retoques na terça e assinatura – Praça 2023. O muralista pegou o vôo das 11h pro Rio. Saravá, irmão!
Praia de inverno – Na segunda, eu e o muralista entramos no mar às 16h30min; na terça, repeti a dose e hoje, quarta (dia da festa de Airá no terreiro Ilê Axé Omi Olodo Tolá), fui de manhã: céu claro, sol, 23 graus, água translúcida. Delícia total. E é inverno (diz-que muda de hoje pra amanhã: chuva e queda de temperatura). Saravá!
Três vidas – Trabalho com as colagens de Jorge de Lima, Pintura em Pânico, livro lançado em 1943, reunindo as imagens que vinham saindo desde 1938, em O Cruzeiro, e 1939, no Suplemento em Rotogravura do Estado de São Paulo, com um texto de Mário de Andrade (“As nossas tendências mais recônditas, nossos instintos e desejos recalcados, nossos ideais, nossa cultura, tudo se revela nas fotomontagens”). Vou juntando os elementos para o próximo fragmento: a Poesia em Pânico, de Murilo Mendes (que faz o prefácio do livro do amigo Jorge e que participou das primeiras colagens) – “Destruição: Morrerei abominando o mal que cometi”; a palavra pânico, medo diante da aparição perturbadora do deus Pan (“O ruidoso deus de pés de cabra” – Murilo), os poemas de Jorge da Túnica Inconsútil (1938), seu romance de 1939, A mulher obscura (uma reescrita de Salomão e as mulheres, de 1927), a idéia da psicastenia, fraqueza da alma (“Tal estado – o esgotamento de Jorge nos anos 40 – é fronteiriço da psicastenia que invade o campo emocional e causa distúrbios morais”) que retiro de José Fernando Carneiro, amigo e médico de Jorge, em Apresentação de Jorge de Lima (essa nevrose – Caldas Aulete, ed 1958 – palavra que aparece como obsoleta no Houaiss em 2001), as colagens de Max Ernst, o surrealismo, etc. Com todos os ingredientes, vou plasmando a coisa.
Praia no inverno – Voltando do mergulho no mar, vejo depois da ponte de madeira o pica-pau de cabeça amarela. Seria o mesmo?
Ilê Axé Omi Olodo Tolá – Fomos já meio em cima da hora, sem saber exatamente onde era, claro, mas chegamos, pois ao desligar o carro ouvi o som dos atabaques que nos levou até o terreiro perto da casa do Joca. A fogueira de Airá (“uma das qualidades de Xangô. Segundo a tradição, antes de ser divinizado, era escravo de Xangô, tendo depois se ligado a Obatalá, Oxalá. Por isso usa as insígnias do rei de Oió mas veste-se de branco e recebe oferendas de alimentos e sacrifícios junto com o Grande Orixá ao qual se ligou.” Nei Lopes) já tinha começado. Um jovem vestido de branco gentilmente nos conduziu até dois lugares ainda vagos, ao lado dos atabaques. Daí, seguimos o ritual, os cantos, as danças, o transe de três filhas-de-santo (uma delas de Iemanjá, as outras duas de Iansã) que dançavam de olhos fechados, a de Iemanjá, fazendo um bico com os lábios. Como na Bahia, depois do ritual a comida comunitária. Tiago e Tita estavam lá e Joca Wolff também. Saravá!
Ilha do vento – O vento sul interrompeu o veranico e a temperatura despencou dos quase 30 pra 17 graus.
Com a devida vênia – Volto à partitura de Par constante, de Guinga, pra refazer a introdução – uma linda sequência de acordes que deságua na melodia, (ré, mi, sol / mi, sol, si, ré – em colcheias) tal como o rio no mar – e ao começar a cantar o vocalise vai aparecendo uma letra amalucada. Na segunda parte, encaixo: A Clara e o Mundaú / o poste e o urubu / viver é andar a pé / morrer é deixar a Guiné (olha o breque): o Daomé?. Volta pra primeira: Eu queria ser o seu caderninho / pra escrever lá / te quero bem / Ah, meu trem /que saudades de Portugal. Talvez seja essa gostosa alternância de veranico e inverno (e a pipa tb, admito) que provoque essa vontade amalucada. Que audácia, mané!
Ciência encantada – O Atlântico é uma gigantesca encruzilhada e as encruzilhadas são lugares de encantamento. (Simas & Rufino)
Visita nobre – Hoje, último dia de junho, a visita na embaúba foi do gavião carijó. Lindo, bico curvo, escuro, o terror dos galinheiros e também perseguido por suiriris e bem-te-vis por atacar os ninhos (vi uma vez os bem-te-vis putos com um tucano que rondava seus ninhos nas árvores da Pedra Branca). Ficou lá no alto por um momento, acompanhando com interesse a passagem dos pássaros menores. Depois se foi, com o mesmo garbo que aquele condor do cinema (lembro como todos assobiavam quando ele aparecia, na tela, no alto da montanha, até que ele voasse, cena que se repetia em cada sessão – condor, aliás, que é parente do urubu). Saravá! (Hj tem candomblé de Xangô, orixá do raio e do trovão, no Ilê Axé Omi Olodo Tolá)
Astolfo Marques – “O Sol, elevando-se no Oriente, brunia com seus oblíquos raios a ondeada superfície das águas, que formava como que um fundo fantástico de luminosa prata ao quadro encantador que bordava a praia.” (O batidinho, do livro O 13 de Maio e outras estórias do pós-Abolição)
Candomblé de Xangô – De novo tomado pelos toques dos atabaques no terreiro do Ilê Axé Omi Olodo Tolá; e também pelas cores, pelos movimentos, pelos gestos das mãos e dos rostos, pelos cheiros, pelos pontos dos quais capto aqui e ali uma palavra conhecida (alguns nomes de Orixás, algumas saudações entre um ponto e outro – eparrei), pelas relações hierárquicas entre a iyalorixá, suas filhas, alguns convidados que eram muito reverenciados, todos com roupas coloridas em contraste com o branco da maioria. Um encantamento que toma todos os sentidos. Quase três horas em que elas dançaram, cantaram, giraram, se agacharam no chão diante dos atabaques e da iyalorixá; uma riqueza de movimentos e ritmos que tem seu apogeu na incorporação dos orixás que então rodam todo o salão, sempre acompanhados por alguém. Fui com Joca e Marina. Noite linda no Rio Tavares, de lua cheia, e ainda voltei pra casa cheio de livros da Marina. Saravá!
Manhã nublada – Lambendo os livros que Marina me emprestou: deus não dirige o destino dos povos, de Marcelo Labes – li as primeiras 70 páginas, Santa Catarina e o nazismo, escrito durante os anos obscuros do coisa ruim – , a poesia de Ana Maria Marques qu’eu ainda não conhecia – Lanternas: Na noite / aceso / o poema se consome – e os outros que eu ainda nem abri: Pequena Coreografia do Adeus, de Aline Bei; dois de Carlos Eduardo Pereira, Enquanto os dentes e Agora Agora. E mais: Um editor no Império / Francisco de Paula Brito (1809-1861), de Rodrigo Camargo de Godoi. Tão bom tê-los aqui, ainda incógnitos, guardando sua potência para quando eu os abrir numa manhã nublada. Hoje é dia de estar com Haydée. Saravá!
Joga bonito – Hoje, Haydée repetiu várias vezes que queria “ir pra casa” ou que quando ela fosse pra casa, faria isso ou pegaria suas coisas; digo que ela está em casa e ela, que está confusa. Conversamos. Falamos sobre sua idade, 95 em agosto. Diz que “seu pai me faz falta”. Vai virando outra; todo o controle que tinha de si mesma se esvai; agora ri mais, parece mais solta, no entanto, há os momentos de turbação, de medo, de angústia, quando o sentir-se em casa se vê ameaçado; assim, à noite quando acorda falando da mãe ou quando não reconhece o apartamento como seu lugar. Oxalá mantenha a ternura com que me recebe toda a semana e o riso solto que vazou do antigo tolhimento e da contenção que a vida lhe plasmou. Lembro da capa do disco Muito (1978), a cabeça de Caetano pousada no colo de Dona Canô dentro de uma imagem redonda e azulada. É o disco de Terra, Sampa, São João, Xangô Menino. A mãe no centro da Terra. Saravá, Haydée! “Ai, ai, Haydê / joga bonito qu’ eu quero aprender” (Candeia)
Viagem pro Nordeste – Fecho os planos pra viagem em setembro e com Aline, a geógrafa, esboço um itinerário: União dos Palmares (Jorge de Lima), Caruaru (a feira), Garanhuns (a serra, Lula e Dominguinhos), Palmeira dos Índios (Graciliano), Pedra, o sertão (chama-se Delmiro Gouveia desde 1943), bem perto do São Francisco, da Bahia, de Pernambuco e de Sergipe. Cinco cidades em 10 dias. Será muito?
Os papéis de Denis – Março 1973 / As idéias se debatiam em mim, sonhava, não ambiciosamente, mas criei um mundo lindo. Não era impossível; ali seria o começo de tudo; ali, neste ano, começaria todo o meu sonho. / Estava firme no violão, dali pra frente não perderia mais o embalo. Ia muito bem no IBEU e já estava ficando bem adiantado. Andava sem tempo pra tudo, pois o Colégio Militar me pedia demais mas ainda me virava e mesmo ficando muito cansado ia a meus concertos e não deixava de ir onde queria. O que resolveria tudo é que este era o meu último ano no Colégio Militar. Já não agüentava mais aquilo e não tinha nada a ver estudar lá. / Nesta época, lia bastante e já tomava gosto por um bom livro. / Até que em maio tudo começou a desmoronar, de pedacinho em pedacinho, devagarinho, de modo que eu não sentia. Não podia imaginar, mas sempre sabia alguma coisa. / Tive como um resfriado e dormia o dia todo, mas os antibióticos não resolveram. Acharam que era mononucleose e fui me tratar como um hematólogo. Daí, parei num nefrologista e nesta altura já nem me agüentava em pé e tossia muito. / Internei num hospital, com promessa de sair no quarto dia pra fazer os exames e estou por lá até hoje, quase dois anos depois. Durante este tempo, houve épocas em que passei muito bem, voltei até a estudar e estava indo otimamente, mas tudo se acabou novamente. / Não podia imaginar que uma vida pudesse tomar outro rumo assim tão bruscamente, tão friamente. E naquela época não avaliava a que ponto aquilo chegava. / Nunca fiquei doente e nem tive problemas, a não ser os de qualquer criança normal. Me sentia esquisito ao ir a hospitais, não gostava sinceramente. Era por educação. / Do suposto resfriado, esperava ficar bom nos próximos dias e nem me passava pela cabeça internar num hospital. Nem na minha, nem na de ninguém lá de casa. / Era impossível imaginar que tudo isso pudesse acontecer e eu estava alheio a tudo, agora sinto que era um ignorante perante tudo que ia se passando comigo. Eu não me entreguei, não. Ajudava aos médicos, me interessava pelas coisas novas que surgiam, mas (não que eu não tenha certeza que vou ficar bom, tenho sempre que pensar neste sentido e sinceramente a minha vontade de viver, de criar, de sentir que os outros me vêem vivo, não me deixam dúvidas quanto a isso) não avaliava os riscos pelos quais estava passando e nem as conseqüências que poderiam surgir. (até aqui, a lápis. O resto vai a caneta). Em comparação a hoje, não sabia nada que poderia me acontecer. Tinha certeza absoluta que logo voltaria tudo ao normal. Mas as coisas foram acontecendo e sem sentir fui aceitando sem sofrer tanto. Havia dias que me desesperava é lógico, mas poderia ser muito pior. Posso dizer que aceitei tudo quase passivamente. Quando vim pra São Paulo é que fiquei mais tenso, mas depois compreendi que não havia outra saída. / Fui pro Hospital das Clínicas e ali minha mãe não poderia ficar comigo. De princípio achei ruim, mas depois cheguei à conclusão que é muito melhor para o doente, pois ele se esforça mais e não se entrega na cama. Com um parente, o doente não faz nada a não ser ficar mais doente. Fiz amizade com todos e me dava muito bem com a enfermagem. (o texto, escrito em papel de carta, para aqui)
Ciclone extratropical – Falo com Haydée no telefone. Está aflita, confusa, queria falar comigo pra que eu fosse buscá-la pra levá-la de volta pra casa. Tento tranquilizá-la. Digo que amanhã estarei com ela. Amanheceu chovendo; depois do violão, vou dar tempo pra mãe que carece de um acalanto. Saravá! (Dias depois, um domingo, eu tocava com a Tita quando a cuidadora me chama pra avisar que H está muito agitada: vou pra lá e passo o resto da tarde com ela. Conversamos, mostro-lhe os quadros de Orózio Belém – que ela tem desde que morávamos no Leblon – , os dois pretos velhos e aquele todo em azul, suas roupas no armário, as fotos dos filhos, dos netos e bisnetos e, por fim, a foto de Alamiro na cabeceira da cama. Ela ri. Saímos, tomamos um café e comemos um pedaço de torta de chocolate. Quando voltamos, já está tranqüila. Esses episódios têm se repetido nas últimas semanas. Tita me conta que a mesma coisa acontece com a mãe do Fernando; Porrúa fala também do pai e da mãe e dos cuidados e revezamentos da família para atendê-los.
Os papéis de Denis – Chora. / As lágrimas vêm lá do fundo, apertadas, como se fosse o único meio de mostrar pra mim que estou vivo. / Qualquer coisa que me traga a lembrança da vida de antes me faz chorar, lembrando como eu era e como poderia ser hoje. / Nem acredito, mas infelizmente é a realidade. Eu não vou acordar e viver aquela época como se nada tivesse acontecido. A minha vida é essa. Eu que tanto queria viver, viver de verdade, normalmente, simplesmente. / Tantos sonhos, tantas idéias, tantos anseios e não pude nem tentar. Ainda terei uma chance... Terei. (escrito atrás da capa de um bloco de cartas aéreo pautado, 50 folhas, sem data) Como se ele estivesse aqui. Saravá, irmão!
Chove chuva – Dias de ciclone, de muita chuva, boa ocasião para o violão e os livros: terminei o Marcelo Labes, deus não dirige o nosso destino (pau em Santa Catarina!), li o enquanto os dentes, de Carlos Eduardo Pereira (muito boa narrativa), e comecei a pequena coreografia do adeus, de Ana Bei. Avanço na construção do novo fragmento de Três vidas: entre os quadros reproduzidos em um livro da Edusp sobre Jorge de Lima, escolho pássaros e flores, de 1941, uma imagem em vermelho, bem perturbadora; leio que começou a pintar no final dos anos 30, que freqüentava o ateliê de Sylvia Meyer. Que relação teria a pintura com seus estados depressivos? Com sua psicastenia? Interessante que as imagens da draga, do galo da igreja, de Celidônia se afogando, não apareçam nestas imagens, digo, explicitamente. E nem nas colagens que parecem explorar um mundo metafísico. Escrevo ouvindo o barulho da chuva descendo pelas calhas. Julie, a gata da Ana Paula, dorme colada no aquecedor.
Segunda nublada – “Chegou a hora de caminhar, eu vou / Vou pra Portela que o samba / já me chamou” (Francisco Santana, Velha Guarda da Portela)
Mural de Marcelo Praça
(Actualización septiembre – noviembre 2023/ BazarAmericano)