diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Diário de viagem. Um tradutor na Ilha de Santa Catarina
Outono no Desterro / o fascismo e o amor aos animais / Lula visita a China / e dias de afeto com Francisca em Guaratinguetá

O nome Denis,
como se ele
estivesse aqui

Carlos G. 

 

Meanwhile the wild geese
high in the clean blue air
are heading home again

Mary Oliver

 

Eu dei um pito pra ‘nha Tereza
que ponha logo feijão na mesa
qu’eu to com uma fome qu’é uma tristeza
Ai dona Tereza

Francisca canta lembrando o irmão Virgílio

 

 

O homem de Garanhuns – foi recebido em Pequim por Xi com tapete vermelho e a banda tocando “Novo tempo”de Ivan Lins e Vitor Martins. Em Xangai, ao som de “Se essa rua fosse minha” – lembra quando cantei pra você no alto da colina, no meio da floresta (cobertos pela mata estavam os javalis)? Lula volta pela terceira vez ao Império do Meio. Saravá!

 

Lorenz e os gansos – Nos meus passeios pelo Ostpark, em Francoforte do Meno, passei a prestar muita atenção aos gansos. Havia gansos do Canadá, do Nilo e o ganso bravo (Graugans). Conhecia muito por alto a figura de Konrad Lorenz, prêmio Nobel em 1973, traduzido no Brasil, mas não seus trabalhos sobre os gansos e sobre a agressividade. Tampouco conhecia sua biografia ou seja sua entrada para o partido nazista logo após a anexação da Áustria pela Alemanha de Hitler – trabalhou no Departamento de Política Racial do partido (NSDAP) – , os anos de prisão com os russos. Assim como Ernst Jünger, Lorenz é mais um naturalista tardio alemão que misturava o amor aos animais, às plantas e ao meio ambiente à simpatia pela extrema-direita.

 

Sérgio e Ildefonso – Em um interessante ensaio de Sérgio da Mata (Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil), fica-se sabendo que Sérgio Buarque, que esteve na Alemanha de junho 1929 a janeiro de 1931, pouco relatou sobre a grande crise que vivia o país naquele tempo, preferindo falar das boates, dos cabarés, das livrarias, dos balneários. Passo o dia lendo as colunas de Ildefonso Falcão, o amigo de Sérgio que o ajudou nos primeiros dias de Berlim, e constato a mesma coisa: quem lê seus textos para a revista Careta não imagina que o país enfrentava uma enorme crise, com desemprego, inflação altíssima e ascensão do nazismo. Pelo contrário, Falcão chega a contar com entusiasmo a fundação do Instituto de Estudos Luso-Brasileiros na Universidade de Colônia e nem a suástica entre as bandeiras portuguesa e brasileira o constrange. Vale lembrar: Ildefonso também era amigo de Jorge de Lima e foi ele quem ajudou o poeta a publicar o livro racista na Alemanha nazista em 1934. Em tempo: o ensaio de da Mata busca contestar as relações de Raízes do Brasil com Max Weber e mostrar seus subterrâneos: ou seja, as simpatias de Sérgio por aquilo que da Mata chama de “autores da revolução conservadora alemã” da época da República de Weimar, tais como Edgar Julius Jung, Arthur Moeller van den Bruck, Hans Günther, Carl Schmitt, Oswald Spengler, Ernst Jünger e Othmar Spann ou mesmo o Thomas Mann de Considerações de um apolítico, de 1919. 

 

O ano do ganso bravo – Agora, no outono, quando escrevo estas linhas, vêm muitos, muitos gansos voando de volta do lago Alm, onde passaram a noite, para Auingerhof. A cada manhã, descem das alturas e pousam no campo diante da casa. Isto é tão certo quanto amém em uma oração e nós fizemos um super confortável banquinho com mesa neste lugar no campo onde é possível observar da melhor maneira os gansos. Todas as manhãs em que estou em Grünau, sento-me ali e espero os gansos, e todas as manhãs a chegada deles é a mesma festa para mim, a mesma maravilha quando eles batem suas asas e, planando, lentamente perdem altura, em vôo picado, em direção a nós e pousam bem próximos. (Konrad Lorenz, Das Jahr der Graugans, 1979)

 

Francisca conta – Depois ele ficou doente... Meu pai não estava doente não. Mas ele levantava de manhã com o pé todo inchado. Meu pai não era velho, velho, não. Tinha oitenta e poucos anos. Como não era velho? Tinha 80 anos! Não, não era, porque eu estou com 93 e não to sentindo que estou velha (ri). E não tinha irmão nenhum, você? Tinha. Virgílio, meu pai, era viúvo quando casou com minha mãe. Então tinha o Virgílio que era o filho dele, Elvídia, a vó da menina aí (Carol), João, e João morreu quando tinha 20 anos, e o Antônio que morreu quando era pequetitico. E da minha mãe, era eu e o Carlito que também já morreu, com 55 anos, deu problema e ele acabou morrendo, não faz tempo, não. Mas, aí passou... ‘xo ver. Não tinha mais ninguém? Irmã, só tinha a cumade Elvídia. Primeira filha do meu pai que casou. Tinha a Maria, já morreu, tinha a Ana, a Maria, tinha o Francisco, o Antônio, tudo da família da cumade Elvídia, minha irmã. Tudo sobrinhada, sabe? Depois veio ‘cabando, minha irmã morreu, meu cumpade Zé morreu no hospício, rapaz, eu nem cheguei ver não, eu trabalhava lá no Rio, não cheguei a ver ele não, ficou louco da cabeça. O Rui diz que ele falava... Morava na Pedrinha, conhece a Pedrinha? Lembra da Pedrinha? Aquele bairrozinho onde tem a igreja de Nossa Senhora da Piedade. Então, ele, como diz, ficou louco, rapaz. Saía pra rua e falava pra cumade Elvídia, minha irmã: Elvídia, vem cá ver que ele ta querendo casar com Roberto Carlos. Falava tudo besteirada, ficou ruim mesmo, aí o pessoal diz que não comia nada, aí o pessoal levava ele pra dar comida, ele não comia. Eu sei que ele quase morreu de fome, levaram pro hospício, pra curar, pra fazer curativo pra ver se melhorava, sabe? Que melhorava nada, ‘cabou morrendo de fome. É triste, sabe? O pessoal diz, por exemplo, Ah, esse homem é louco, não, louco é aqueles que morre de fome no hospício. É triste mesmo, sabe? E ele não era velho, cumpade Zé era novo, não tinha nem 60 anos e quando ele ficou doente, foi pro hospício e lá ficou. Não é brincadeira, não, a vida. 

 

A morte de Maria Rosa – Aí morreu meu pai, depois passado... passado um ano, aí minha mãe morreu também. É isso mesmo. Minha mãe morreu de repente, minha mãe não tava sentindo nada. Sei que eu levantei de manhã, ela fez café, ela tava bem. Aí, ela falou assim: Olha, Francisca, to com vontade, escuta só, to com vontade de comer um pirão de caldo de frango. Falei, ta bem, minha mãe, a gente mata o frango. Lá na roça, é tudo solto, o frango, criado gordo na grama, sabe. Aí minha cunhada Helena vem aqui, eu peço pra ela matar. Peguei um frango nanico, carijó, gordo, sabe. A Helena matou, eu fiz o frango, quando foi duas horas, tava pronto; ela falou de manhã, quando foi duas horas tava pronto. Mãe, já tá pronto o frango, se a senhora quiser comer; já tá pronto, tem caldo, é só fazer o pirão. A senhora vem fazer? Vou. Ela veio na cozinha, ela tava sentada lá, não tava nem deitada, não tava doente, tava bem. Aí ela veio lá no fogão, botou o caldo no prato, fez a farinha, farinha de milho, veio aquele pirão gostoso, ela comeu dois pedaços de frango, uma boca boa, comeu, depois tomou café, acendeu o cachimbo. Ah, fumava cachimbo? É, meu pai também fumava cachimbo. Aí, passou, quando foi de tarde, ela foi, essa hora assim, seis horas da tarde, ela foi pra cama, deitou, depois veio a Palmira, da dona Aurora, veio conversar comigo, queria que eu fosse lá, falei, não, eu não vou deixar minha mãe sozinha. Minha mãe não tava doente, mas tinha preocupação com ela, não deixava sozinha, sabe? 

 

A morte de Maria Rosa (cont) – Aí a Palmira foi embora, quando foi oito horas da noite a Palmira foi embora e eu fiquei sozinha com minha mãe. Arrumei as coisas lá, fui dormir na cama, a cama era larga, mais larga do que essa aqui, aí minha mãe dormia no canto, eu dormia na beirada, aí quando foi... eu deitei quando foi, nem sei que horas, pois ninguém tinha relógio naquela época. Aí quando foi umas hora da noite, não sei que horas que era, era madrugada quase, minha mãe sentou na cama, pediu: minha filha, ‘cende a luz pra mim. Aí fui acender a luz, nem era luz, era lamparina, sabe? Ela tava sentada na cama, encostada com dois travesseiros assim, mas que ela pôs pra encostar. Aí depois, disse: Mãe, a senhora ta bem? Tô bem. Então ficou sentada, aí daqui a pouco, ela foi caindo, foi caindo, caindo pro lado do canto, rapaz, feito um ressono, sabe como é que é? Ai, meu Deus do céu, que qu´eu fiz? Falei: Mamãe, que que a senhora tem? Que mamãe nada. Não respondia, tava morrendo. Aí, eu passei a mão numa vassoura, porque na casa da dona Aurora tinha cachorro, aí atravessei, tinha um corginho, subi lá na dona Aurora, chamei lá, não sei nem que horas da noite, tinha um cachorro desse tamanho na varanda, a alma da minha mãe que me ajudou pro cachorro não vir de lá me morder, podia ter me matado lá. ´Cê vê, eu sozinha, dona Aurora dormindo com Antonio. Um cachorro preto, sabe? ele tava preso numa coleira. Aí eu chamei: Dona Aurora, dona Aurora. Que que foi, Chiquinha? Tô chamando pra ir lá em casa, minha mãe deu um problema nela, não sei se é ataque, não sei o que deu na minha mãe, minha mãe ta morrendo. Então chamei o senhor, seu Antonio, e a dona Aurora pra ir lá em casa. Botou o quimono logo e desceu e fomos. Chegamos e ela tava acabando de agonizar.  Dona Aurora ainda rezou pra ela, pôs uma vela na mão dela, acendeu e ´cabô. Isso já era madrugada. 

 

A ida pra cidade – Aí eu fiquei sozinha, aí todo mundo me queria, um queria, outro queria. Dona Aurora disse; Francisca, todo mundo quer você, eu também quero, mas não quero não, porque você fica trabalhando e fica sozinha. Você procura um lugar bom pra você trabalhar, pra você ganhar seu dinheirinho. Assim você não fica trabalhando na enxada, tirando tarefa na enxada na roça. Aí ela: você procura um serviço limpo, fácil, pra você fazer, pra não fazer calo na mão. Minha mão ficava cheia de calo. Aí peguei vim pra cidade, conhecia a don´ idê, não... Não sei explicar mais, to com a cabeça ruim, sabe? Eu sei qu´eu vim pra cidade, nem sei onde tua mãe me achou. Não foi você que foi lá na vila? Parece que foi. Parece que foi isso mesmo. Ou alguém te disse que tinha trabalho lá? É isso mesmo, eu nem me lembro mais, rapaz, a minha cabeça ta ruim. Também tantos anos. (ela ri) Eu sei que ficou assim, essa vida, essa vida sozinha. Já não tinha meu pai, não tinha minha mãe. ´cabô tudo, fiquei sozinha. Aí, to aqui sozinha mesmo. Tá sozinha nada, ta com a sua sobrinha. É, tem minha sobrinha ali (a Carol). Lá é o quarto dela, em cima, né? O quarto do (ininteligível), lá do outro lado, o quarto do Júnior pro lado de cá. É a mãe com dois filhos, pai não tem. Mas a vida é assim, rapaz. A gente que fica durando mais tempo que lembra do passado. Agora, quem morre novo não tem nada pra contar. É isso aí. (Francisca Gonçalves Dias trabalhou 42 anos na casa da minha família, de 1958 a 2000; voltou pra Guará com 70 anos, aposentada com salário mínimo; seu afeto constitui meu corpo, minha vida, minha história.) 

 

Tarefa vital – Ouvir os gansos (e as aracuãs, os tapicurus, os papagaios, os bem-te-vis, os sabiás...), prestar atenção, dar o tempo.

 

A arrogância dos fracos – Já de manhã, assisto à recepção a Lula por Xi Jinping em Pequim. Os jornais alemães, quase todos, ignoram. Preferem falar da visita da ministra Baerbock, esta, por sua vez, ignorada pelos chineses que também esnobaram, antes, Ursula von der Leyen enquanto recebiam com todas as honras um Macron que ensaia uma posição autônoma – sabem jogar xadrez, por supuesto, os chineses, oder? Sinal dos tempos? Quem diria que a Europa se mostraria mais submissa ao império da guerra que a América Latina? Pra esconder a humilhação e a fraqueza, os alemães continuam a “cagar regra” no território dos outros, na Grécia, na Namíbia (“não sou marionete de vocês”, disse Hage Geingob, presidente do país a um deputado do CDU), na Rússia, na China. Já os capitalistas alemães, por exemplo, da Basf e da Volkswagen, estão muito satisfeitos com a parceria com a China e preocupados com o fim do gás barato da Rússia. “O que a China menos precisa é de um Lehrmeister (tradução livre: um cagador de regras) do Ocidente”, disse Qin Gang, ministro das Relações Exteriores diante da arrogante, despreparada e mal-educada ministra alemã. 

 

O nome Denis – É uma forma medieval francesa de Dionísio, deus do vinho, da alegria, das festas, do teatro, formado por céu, espírito, dia (dyo) e noite, água (nisa), daí, espírito das águas, o céu e as águas, dia e noite. Saravá, irmão (ah, se você estivesse aqui).

 

Convalescência – Na recuperação que se segue ao bode de uma virose, recebo a visita do Joca que veio a mim sem que o tivesse chamado, chamando-o; no dia seguinte, troca de mensagens com Liliane (minha sobrinha, de Brasília) dando conta da comoção que me causou o interesse de Dudu (biólogo, especialista em borboletas, irmão dela) por um texto meu; e logo, visita de Clara e Tiago, de volta do Chile, para onde foram atravessando a Argentina, subindo e descendo a cordilheira, para ouvir em Santiago bandas siderúrgicas; à noite, festa com os amigos da música, nova troca de afetos e a confissão de três meses longe do violão. Carregado de energias vitais e a cabeça a mil, inventando versos e lembrando canções, acordo às 4h da manhã e não consigo mais dormir. Sento lá fora, xícara de café na mão, para ver o fim da madrugada, o nascer do sol e ouvir os pássaros fazerem a manhã: papagaios que passam em bando conversando, aracuãs, bem-te-vis e um que outro tapicuru que cruza os céus com seu bico longo e curvo como uma cimitarra. Curado. Hora de voltar à viola. Saravá!

 

Pequenos prazeres – Sentar no fim da tarde na frente de casa lendo, por exemplo, Flores matinais colhidas ao entardecer, de Lu Xun, e ver a balbúrdia que os papagaios fazem ao passar em bando fechando o dia.

 

Tianxia ou tudo sob o céu – Quando comecei a me interessar pela China, o primeiro passo foi admitir que não sabia quase nada sobre esse imenso país. A porta de entrada foi a geopolítica, os dias de confinamento durante a pandemia e as discussões na internet. Meu primeiro guia foi When China rules the world, de Jacques Martin – dica do Pepe Escobar –, e logo em seguida as lives de Elias Jabbour, professor da Uerj, integrante da bateria da Unidos de Vila Isabel, figurinha linda que passei a admirar e a seguir na selva internética. Fui assim melhorando meus conhecimentos sobre os chineses, esses que alguém de minha família diz odiar e de quem outro alguém, também da família, um dia debochou, soberanamente, referindo-se à vacina que protegia nossa mãe de mais de 90 anos da pandemia de Covid. Agora é possível diminuir ainda mais a distância e a ignorância em relação à China com a revista lançada pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e pelo Coletivo Dongsheng, a Wenhua Zongheng, sendo o primeiro nome traduzido como cultura ou civilização e o segundo verticais e horizontais, que, como explica a professora Tings Chak (coordenadora do departamento de Arte do Instituto, artista e escritora), “tem a ver com essa estratégia de diplomacia e alianças que ajudou a unificar o país pela primeira vez dois mil anos atrás”. Em tempo: são textos de professores chineses traduzidos para o português. A revista em chinês – tem ainda versões em inglês e castelhano – terá, também, textos de professores brasileiros. Saravá!

 

Afeto animal – Foi o livro de Vinciane Despret, Habitar como un pájaro, presente de Porrúa e de Ríos, que me levou a Lorenz (contestado por ela) e sua tese de que a agressão está associada ao território: “o território é tributário da agressão” e “seria um modo de regulá-la repartindo os animais no espaço, a distância uns dos outros”. Assim, me chegaram pelo correio Das sogenannte Böse / Zur Naturgeschichte der Aggression (O mal dito / Sobre a história natural da agressão) e Das Jahr der Graugans (O ano do ganso bravo), 1979). Em seu livro, Despret discute a noção de território, percorrendo textos de ornitólogos e observadores de pássaros desde o século XVII. Deste modo vai contestando a noção de território como apropriação, como posse, sempre pensado nos termos da competição, para chegar a uma idéia de território como matéria de expressão socializada: “Os territórios só existem em atos (...) são objetos de uma performance. (...) São performances que ´afetam´ o território e fazem dele um espaço afetado, um espaço atravessado por afetos. (...) O território é matéria de expressão e o comportamento territorial é antes de mais nada um comportamento expressivo”, estético, no sentido em que se diz de uma criança que ela é arteira, que faz arte. Que delícia! Assim se juntam a filosofia e os pássaros. Uma dádiva de Porrúa e de Ríos.

 

Pássaros da ilha – Arapapá, socó-boi-baio, savacu / garça-vaqueira, maria faceira, guará / tapicuru-de-cara-pelada, curicaca, colhereiro / caracará, chimango, quiriquiri / saracura-matraca, pinto d’água, quero-quero / piru piru, pernilongo-de-costas-brancas, maçarico-de-colete / bacurau, jacurutu, tuim / Suiriri. Saravá!

 

O nome Denis – Éramos jovens, adolescentes, caminhávamos pelo centro da cidade depois de algum concerto de música clássica, e, de repente, ele não estava ao meu lado: havia ficado agarrado a um poste rindo. Seu riso, sua risada, era seu sopro de vida, sua anima. Era bom ver o Denis rir, meu amigo e companheiro. Saravá!

 

Sábado no centro – Com Ana vou ao centro comprar cositas pra viagem no Camelódromo (achei um binóculo pequeno, ótimo para observar os pássaros), passar pelo mercado, comer pastel na feira ao lado da Alfândega, mas, principalmente, para ir ao lançamento de três livros do Nelson Rolim que irão compor 38 volumes contando as histórias de jornalistas mortos pela ditadura cívico-militar. Na livraria, encontro vários amigos, muitos, como eu, de cabeça branca: Nelsinho faz uma apresentação (com aquele entusiasmo gaúcho, ou seja, cheio de tchês e bueno) dos livros – Alexandre von Baumgarten / Nas entranhas do monstro; Antônio Benetazzo / Arte na Revolução e Alberto Aleixo – e os velhos comunistas nos comovemos. Tenho que ir mais ao centro de Floripa, à loja de música, ao choro do mulheril e à roda de samba na Vitor Meireles, ao mercado, ao Camelódromo. Manhã de outono na ilha. Saravá!

 

In memoriam – Al-Amir, o papagaio, Denis, o filé-de-borboleta, e Gerda Schott, a Quequinha, saravá! requiescant in pace!

 

Livro dos Cantares – Nestes dias em que a cabeça não para (a lua ta cheia), lembrei de repente que eu tinha uma edição dos anos 70 de um livro organizado por Kung-fu-tseu, o Confúcio, (551 a 479 a.C.) que reúne poemas tradicionais de 1700 a 600 a.C. Peguei a escada e lá em cima estava ele, 1.254 páginas, She Keng – Introdução / Texto em alfabeto e caracteres / Tradução portuguesa e notas críticas por Joaquim A. Guerra, S.J., edição dos Jesuítas Portugueses, de Macau, 1979 – dizem os Cantos, de Pound: E Kung reduziu 3.000 odes a 300. Entre elas: Rapariga pacata. “A moça pacata e bela / Esperava-me à esquina / Eu, que a amava, não a vendo, / Dei em coçar a cabeça. // A moça pacata e esbelta / Vermelha flauta me deu. / Mais do que brilho da flauta, / Do apreço da moça eu gosto. // Pastora, trouxe-me um ramo, / Raminho formoso e raro. / Não é tanto em si que é belo, / É o ser oferta amiga.” A tradução portuguesa acrescenta ao poema milenar chinês um sabor de cantiga galega, ora, pois. Saravá! (Vale lembrar que os portugueses ficaram em Macau de 1557 até 1999).

 

Três vidas – A novela, fui desenvolvendo enquanto caminhava no Ostpark, aconselhado pelos gansos. A princípio eram duas vidas, afetadas uma, a do poeta, pela culpa, pelo remorso, e a outra, a de H, pelo suicídio do pai. É, foram os gansos que me levaram à Francisca e às perguntas que me fiz entre aquelas árvores lindas, todas com plaquinhas que diziam seus nomes em latim e alemão: Francis viveu na casa de minha mãe 42 anos. Quando chegou, em 1958, eu tinha três anos. O que eu sabia dela? Quem era seu pai? Sua mãe? Como havia sido sua vida antes de morar naquele quartinho apertado, sem janela, no apartamento da Afrânio de Melo Franco, no Leblon? Aí veio aquela coisa de classe. Percebi. Foram os gansos: o Canadá, o do Nilo e o ganso bravo, meus amigos do parque.

 

Conversas com Haydée – Depois de ouvir o fragmento José e a morfina (de Três vidas), Haydée me conta como o amor de Alamiro a tirou do buraco em que caiu com o suicídio de José, o abandono do sonho da medicina e da formação no corpo de ballet do Teatro Municipal com madame Olenewa. O amor de Al-Amir, o califa fatímida reconhecido como o 20° imã pelos muçulmanos xiitas, pela bailarina (parece uma canção de Jorge Ben). Naquela tarde, ela ficou bem emotiva, tocada por sua própria história: nunca, talvez, estivemos tão próximos. Saravá califa Al-Amir! (Como me arrependo de não ter conversado com você sobre seus antepassados mouros, a marca inscrita em sua pele morena e em seu nariz – Alamiro morreu em 2004 depois de cair na calçada, quebrar o braço e a base do fêmur e sofrer as agruras da hospitalização: até mesmo na morte mostrou seu amor por Haydée. Foi-se rápido, poupando a companheira do fardo de uma vida na cama com Alzheimer galopante. Saravá Al-Amir! Saudades)

 

Na casa da Tita – Com Ana e Aline (a fazedora de mapas), pra ver e ouvir Gelson Oliveira (Voilá mon coeur?) e Guinha Ramírez. Noite fria de outono, mas quente de afeto musical.

 

Autor e intérprete – Lendo a apresentação que Richard Wilhelm faz de Confúcio, talvez a figura mais central da civilização chinesa, me vem à cabeça a oposição valorativa que geralmente se faz entre autores (cantautores) e intérpretes, ou “criadores” e “repetidores”. Confúcio não escreveu nada, diz Wilhelm: “Em literatura, sua atividade resumiu-se a transmitir as tradições, sem produzir nada de novo. (...) Seu objetivo não era produzir literatura: queria produzir ações, efeitos, criações”. Assim, reuniu os cinco grandes livros da tradição chinesa: o Livro dos Registros, o Livro dos Cantares, o Livro dos Ritos, o Livro das Mutações e os Anais das Primaveras e Outonos. Grande parte da tradição chinesa (e da judaica também) está nos comentários; os grandes mestres do jazz, mais do que autores, são intérpretes, tradutores, comentadores; Glenn Gould, um grande leitor de Bach (não são as Variações Goldberg comentários sobre um tema?). Interpretor, interpretar, explicar, traduzir, entender, avaliar, estimar, de interpres, etis, medianeiro, ajudante, assistente, mensageiro, aquilo que, em inglês, se diz the go-between, o Hermes da tradição grega. Portanto, auctor, o que produz, gera, faz nascer, de augere, produzir, aumentar, acrescentar, fazer crescer, enriquecer, longe de se opor a intérprete em um sentido de valor hierárquico, com ele se mistura.

 

O nome Denis – Se ele estivesse aqui, iria ver as bandeiras vermelhas de volta às cidades, ao planalto central. 

 

Saravá Mao – O homem de Garanhuns desceu em Pequim / A banda dobrou um novo tempo / Antes, passou em Xangai / Se essa rua, se essa rua (?) / O homem de Garanhuns.

 

 

(Actualización mayo – julio 2023/ BazarAmericano)

 




9 de julio 5769 - Mar del Plata - Buenos Aires
ISSN 2314-1646