diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
Editora
Consejo editor
Columnistas
Colaboran en este número
Curador de Galerías
Diseño
“Cê tem um jeito verde de ser
e eu sou meio vermelho”(Guinga e Aldir Blanc)
“Apre(e)nder / o canto da baleia”Boi do mar (Chico e JSB)
“Depois, o passarinho nacionalista
foi piar no olho de uma embaúba,
poisadouro das preguiças”A bagaceira (José A. de Almeida)
As suítes de Bach – Encontro Chico Saraiva na casa da Marina e do Joca, ao pé do morro do Lampião; ping-pong, conversas sobre a tese – uma tese-suíte que desentranha da partitura bachiana canções à Ilha do Desterro –, viola que passa de mão, a boa companhia dos amigos. De volta, desenterro meu Lautenmusik dos tempos de adolescente e volto a ler as suítes alaúde; na internet, procuro por transcrições da segunda suíte violoncelo para seguir melhor o trabalho do Chico. Por dias, sigo encantado, apre(e)ndendo o canto da baleia.
Primavera – Muita chuva na ilha. A pitangueira, repleta de frutos vermelhinhos, é visitada diariamente pelos pássaros (agora vêm uns de bico vermelho). O suiriri ainda não voltou pra anunciar a manhã. Ainda faz frio. E a expectativa pelo fim do verme, do chorume humano, deixa todo mundo histérico.
Bach em Cöthen – Foi na corte do príncipe Leopold de Anhalt-Cöthen que João Sebastião escreveu as seis suítes violoncelo – assim parece –, sendo a última para um instrumento inventado por ele, a viola pomposa, de cinco cordas, ou seja, uma a mais (um mi agudo - E) que a viola (C – G – D – A). Seus biógrafos afirmam que foi uma época muito feliz e de muitas peças instrumentais, já que não havia música religiosa na corte reformada do jovem príncipe (era calvinista). Também foi nessa época – Sebastião tinha 32 anos quando foi para Cöthen – que morreu sua primeira mulher, Maria Barbara, e que ele se casou com Ana Magdalena. Aliás, diz-que a famosa Pequena Crônica de Anna Magadalena Bach – tenho numa edição de 1988, da Veredas – foi na verdade escrita por uma inglesa, Esther Meynell, em 1925.
O tempora – Aqui na ilha entre o Amazonas e o rio da Prata, esperamos apreensivos o fim do verme, do chorume humano, do perverso que, apesar das evidências, ainda tem o apoio de 50 milhões de pessoas (O mores). Na Europa, a guerra continua e o inverno se aproxima sem o gás russo pra esquentar os corpos e mover as fábricas (os verdes ergueram novamente o muro). O mundo assiste ao 20º Congresso do Partido Comunista da China que reconduz Xi Jinping – já apontado como uma figura da estatura de Mao e Deng Xiao Ping – à liderança por mais um mandato. Nos EUA, um presidente demente conduz o país ao desastre. Na sala de casa, antes do sol nascer, leio as notas do prelúdio em ré maior, do livro de obras para alaúde de João Sebastião.
Viagem atlântica – “O ato de fotografar e filmar a partir da amurada culminava com momentos em que o navio passava bem rente, quase roçando o porto. Nessa hora em que se devia estar totalmente dedicado à união do olho com as coisas, as pessoas se ocupavam com tais apanhadores de sombras e seus aparatos. Eles mecanizam a lembrança.” (Ernst Jünger, a bordo, 5 de novembro de 1936, chegada em Belém do Pará)
Um envelope branco – Encontro o envelope na mesa de um dos quartos do apartamento de Haydée com o meu nome. Dentro, fotos e documentos de família dos Gonçalves e dos Amaral Guimarães, do início do século, avós e pais da mãe de Haydée, Odette, e do pai, José. Mais material para a narrativa (Três vidas) interrompida desde a saída da Alemanha.
Elogio da banalidade – As fotos de família, os documentos velhos, amarelados, são banais e só teriam importância se a família ou o sujeito pesquisado tivesse algum valor histórico ou social. Nos mercados de pulga, a gente encontra essas fotos que, na maioria das vezes, escondem histórias que nunca vamos recuperar; em Francoforte do Meno, achava também diários, cadernos com poemas escritos a mão, cartas, papéis velhos, nas feiras de domingo ao longo do rio ou no espaço ao lado do Eissporthalle, no Ostend. Segundo o dicionário, banal é o que se dizia de certas coisas pertencentes ao senhor feudal e de que seus vassalos eram obrigados a servir-se pagando um foro, a título de indenização; é aquilo que pertence ao ban, circunscrição do suserano. E ban significa ainda proclamar, pronunciar uma condenação ao exílio, abandonar (à ban donner, deixar ir ao exílio). Ou seja, a banalidade também é a carne da luta de classes. Por aí meu interesse pelo diário (recolha de circunstâncias)? Pelas três vidas – uma certamente célebre, vida de poeta, as outras banais, de uma trabalhadora doméstica de origem camponesa e de uma dona de casa da classe média carioca da segunda metade do século XX? Pela família (do lat. famel, famulus, servo, escravo – fâmulo, o que serve como criado)?
Papéis de família – Declaração de família para efeito de Montepio. Senhor Diretor Geral de Contabilidade do Ministério da Viação de Obras Públicas. Isabel Eugênia do Amaral Guimarães vem como Agente Postal Telegraphica de rua do Senado em cumprimento ao disposto no artigo nono do Regulamento que baixou com o decreto número vinte e dois mil quatrocentos e quatorze de trinta de janeiro de mil novecentos e trinta e três, fazer a seguinte declaração escrita e assinada por seu próprio punho, na presença das testemunhas abaixo assinadas. Nasceu em dez de outubro de mil oitocentos e setenta e seis na cidade de Campos, Estado do Rio, contraiu matrimônio nesta Capital na sexta pretoria cível em vinte e cinco de junho de mil oitocentos e noventa e oito com Faustino Guimarães, falecido em trinta e um de janeiro de mil e novecentos e doze; desse matrimônio teve os seguintes filhos: Odette Guimarães Gonçalves, nascida nesta Capital em nove de agosto de mil oitocentos e noventa e nove, registrada na sexta pretoria cível, é casada com Doutor José Gonçalves, médico do exército, tem uma filha Haydée; Walkirio Guimarães, já falecido, nasceu nesta Capital em vinte de março de mil novecentos e um, deixou dois filhos legítimos Gilza e Hélio; Ivette do Amaral Guimarães, solteira, nasceu nesta Capital registrada na sexta pretoria cível em dois de janeiro de mil novecentos e três, Milton do Amaral Guimarães solteiro nascido em onze de dezembro de mil novecentos e seis registrado na sexta pretoria cível. Em firmeza do que fiz a presente declaração para que produza seus devidos e legais efeitos. (a lápis: 15/10/936)
Da Turíngia à Jacarepaguá – E daí ao Cosme Velho, ao Andaraí: “Tratando-se agora de imprimir o Memorial achou-se que a parte relativa a uns dous anos (1888-1889), se for decotada de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões, pode dar uma narração seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem”. (Machado, na advertência ao Memorial de Aires – grifo meu)
De JSB a Poulenc – Corro atrás do nome do compositor francês, impressionista, que me soava “moderno”, popular, lírico, como na Hommage à Edith Piaf, a 15ª das Improvisações, ou em Le coeur sur la main, ou na Pastorale, na Melancolie, deliciosa (achei em um CD gravado no final dos 90). Me atraía ainda seu caráter de fragmento, de pequena joia, muitas vezes seu gostinho de canção (refiro-me às peças para piano solo de Francis Poulenc). Li uma vez que Tom Jobim teria sua fonte de inspiração não tanto só no jazz, mas na música francesa impressionista. E vi também Guinga mostrando uma singularidade harmônica de Fauré (Au bord de l´eau), fazendo a passagem no violão. Voltei a ouvir Poulenc durante a primavera chuvosa na última semana que antecede às eleições. Da Turíngia à Jacarepaguá, passando por Paris, por esses dias sublevada, de saco cheio do blá-blá-blá da Otan e das contas cada vez mais caras, sem sair da ilha.
Bem-vindo – Ao acordar hoje, ainda escuro, ouvi novamente o canto familiar, um assovio longo, suave, um trinado. Coisa boa! O suiriri voltou. Saravá!
Três vidas – O narrador olha o quadro na parede, um romance sobre um plano. Nele, anota com marcadores coloridos o que precisa para a narrativa. Mais ou menos no centro, está o título em azul, à esquerda no alto, em vermelho, Jorge, à direita no alto, Francisca, abaixo do título, um pouco à esquerda, Haydée. No canto inferior direito, a descrição, a paisagem, os rios, a coxilha, a Zona da Mata, o vale, mas também os meios, o trem, o telefone, o telegrama, a carta, o navio, o Zepelim, o cinema, o rádio; no esquerdo, as relações de classe, a escravidão e as plantations, o trabalho de doméstica. No alto, entre Jorge e Francisca, o narrador, o destinatário e uma definição de fragmento. Por todo lado, as datas, os anos dos acontecimentos, os lugares, os personagens secundários. O quadro não precede o texto que vai aparecendo na tela do computador, é parte de um conjunto ao qual se articula ainda o caderno preenchido a caneta. Com eles, mantém fidelidade a uma prática, a uma disciplina, a uma maneira de colocar o corpo, como quando toca o violão. Ah! E ainda as gravações. O narrador grava os fragmentos para ouvir como soam. Carece pensar as frases como música, como frases musicais. Como valsas ou choros ou maxixes de Dilermando. Escrita, mis-en-scène, voz. No quadro, de longe, vê os grafismos em cores distintas que vão ganhando espaço sobre a superfície branca, um retângulo imaginário. O livro teima, impossível esquecê-lo.
À beira d´água – “De outro compositor, tem tantas que eu gostaria de ter feito. Mas eu posso citar uma que eu estava estudando hoje, que é uma música chamada Au bord de l´eau, do Gabriel Fauré. Que é uma maravilha, uma obra-prima, é muito bonito. Como é que é?”, começa a tatear no violão buscando a cadência que lhe chamou a atenção, solfejando a melodia. Para em busca de um acorde: “Pra onde vai?”, refaz a cadência com a melodia no lari-lará: “Viu o caminho do cara?” Toca outra vez, sinalizando um acorde específico e comenta: “Nunca vi tão bem colocado”. (Guinga em Um Café lá em casa, com Nelson Faria)
É primavera – Enfim a estação chega a pleno num dia brilhante, cheio de luz e cores. As aracuãs e os passarinhos continuam visitando a pitangueira. O suiriri já está integrado à orquestra que saúda e dá boas-vindas ao sol que emerge, no mar, por trás de ilha do Campeche. Caminho até a feira cantando os primeiros compassos do prelúdio da segunda suíte violoncelo, de Sebastião.
É dia de Lula – Amanhece um dia de verão, mas os manezinhos na fila da escolinha do bairro onde voto apontam pro sul e dizem que a tempestade chega de tarde. Entro às 8h13min pra votar na 13ª Seção por 13 pra presidente e 13 pra governador. Grudado no 247 (radinho de pilha virtual), acompanho as notícias. Que todos os orixás nos protejam. Saravá!
Sábado no Centro – Um dia antes das eleições, levamos Haydée pra passear no Centro da cidade. Há tempos ela não ia; entramos em lojas, atravessamos o mercado público, vamos até o Palácio Cruz e Souza (e ela pergunta: quem é esse? – há um mural na parede do prédio vizinho com a imagem do poeta, a metade do corpo submerso na água, um bando de cisnes e nuvens sobre a cabeça, um poema, Enlevo, e um enorme cisne de asas abertas e pescoço esticado, ao lado. Em uma loja, ela diz às atendentes que mora longe, em Florianópolis (hoje ela acordou achando que estava no Rio); todos reagem bem ao meu adesivo. Na farmácia, falando sobre o calor, um homem negro, sorrindo, diz que “amanhã vai dar 13 graus”. Passamos pela manifestação (bandeiras vermelhas, o rosto de Lula de barbas brancas), encontro amigos. Almoçamos no Morro das Pedras, ao lado do mar, e Haydée toma cerveja (não é, nem nunca foi, seu costume). Dia bom (já em casa ouvimos Elly Ameling cantar Au bord de l´eau).
De volta à casa – Tão bonita a festa, pá. Estou contente. Depois de quatro anos de ódio e horrores, o verme volta pro esgoto (e, oxalá!, pra Bangu 1), e Lula ao governo. Hoje o suiriri cantou Lula lá, Lula lá. O fascismo (que, claro, ainda vive) não vingou. Perde emporcalhado por seus próprios excrementos. Enfezado deve estar o verme, cheio de fezes. Tão bonita a festa, pá. Estou contente.
Mãe-criança – É uma foto pequena (8cm x 5cm), com seu preto e branco já meio gasto, amarronzado, uns claros, umas manchas brancas. O que se vê é uma menina de 7 anos, Haydée, mostrando uma boneca – abrindo seus braços em forma de cruz –, sorrindo pra câmera, metida em um casaco quase até os joelhos, de boina branca contrastando com o cabelo curto, preto – a franjinha no alto da testa –, sapatinhos de boneca e meia grossa. Atrás dela, e acima de sua cabeça, a cabeça de um camelo, um portão, uma coluna e um pedaço de muro. Há luz estourada, manchas brancas, no corpo do camelo, entre H e o portão, no chão, e atrás de H, à esquerda, no muro. A foto é dedicada “À tia Carmen. Haydée no Jardim da Aclimação, SPaulo 10/5/935.” Só tenho uma ideia melhor do rosto e do sorriso depois de digitalizá-la. A foto banal da criança adquire um ar surreal na medida em que percebemos os planos: em primeiro, H fazendo pose; em segundo, a cabeça do camelo; em terceiro, a coluna que sustenta o portão (este, feito de tábuas de madeira). As linhas do muro, abaixo e acima, não estão perpendiculares ao pequeno retângulo vertical da foto e sim levemente inclinados. A mãe-criança faz pose diante do camelo no Jardim da Aclimação. Dez anos antes da tragédia.
Barthes, a mãe e a foto – “É isto! (...) o movimento de reconhecimento do objeto em sua dilacerante particularidade”.
Primavera na ilha – Esfriou de novo, apesar de já ser novembro. O ipê rosa já deixou cair suas folhas e os botões de flores começam a aparecer. Hoje, tivemos a visita de um tucano, bem cedo, e, depois, de um casal de gaviões carrapateiros que piavam, namoravam, resplandecentes na contraluz. O verão se aproxima preguiçosamente.
Banal x singular – Em sua biografia (Volta à infância), Povina Cavalcanti (cunhado e biógrafo de Jorge de Lima) põe a nu logo de cara sua hesitação: “Até que ponto interessariam minhas memórias de menino insignificante, nascido numa cidadezinha de interior e em meio de família pobre?” Sua vida banal, não mereceria uma biografia como a de Jorge. Barthes opõe à banalidade (dizer o que todo mundo vê e sabe) a singularidade (salvar essa banalidade de todo ardor de uma emoção que só pertencia a mim); a singularidade da foto da mãe no Jardim de Inverno paira sobre toda sua reflexão sobre a fotografia (A câmara clara). A foto de Haydée no Jardim da Aclimação não me produzia um sentimento semelhante; o que me atraía era a enorme distância dessa menina que eu mal reconhecia, desse sorriso e do gesto de mostrar a boneca de braços abertos. Havia algo, sim, na imagem, algo que estava presente no trabalho do romance, da novelita, das três vidas, algo que me dizia respeito diretamente e que eu acreditava passar para você, transmitir, como um meio entre outros meios; algo que tinha muito de banalidade e, no entanto, de absolutamente singular. A foto parecia-me falar em um idioma perdido, com uma música envolvente, mas opaco, ou, talvez, melhor, translúcido. Dela, eu via a luz, um jogo de luzes, de manchas claras e escuras, e a figura insistente da mãe-criança tornada ainda mais enigmática pela cabeça do camelo. Mas via também a roupa “de domingo”, o cuidado expresso na boina levemente inclinada, nas meias de inverno, os poucos traços de classe. A foto me chega agora que Haydée tem 94 anos, vai perdendo contato com o mundo, tornando-se mais “espontânea”, menos controlada, quase high, com um bom humor e faceirices que às vezes surpreendem (como a de mostrar a língua quando é contrariada); os álbuns, é verdade, andaram pela casa, tenho vaga lembrança, mas não despertavam muita curiosidade, pareciam velharias inalcançáveis. Agora, aposentado, posso dar tempo às fotos; algumas batem e daí, dessa faísca, nasce o impulso à escrita.
Jorge, uma vida – No prefácio, aliás Pórtico, de Vida e obra de Jorge de Lima, Povina ensaia novamente a estratégia discursiva da modéstia – por que ele escreve a biografia do grande poeta? – e cita como atenuante sua experiência anterior, a biografia do poeta Hermes Fontes, já desconhecido nos anos 60. Diz ele que a vida do poeta esquecido talvez comovesse mais do que sua obra, em função de seu fim trágico, anunciado nas páginas dos jornais de 27 de dezembro de 1930 (Hermes Fontes poz fim a sua vida varando o craneo com uma bala, Correio da Manhã). Jorge, ao contrário, tem uma obra “que o projeta a alturas incomensuráveis”, por isso “o homem Jorge de Lima não interessa como tragédia”. E também por isso “recuava diante da grave empresa” que, por fim, executou. Ao descrevê-lo, lembra dos tempos difíceis nos anos 40: “Teve, na vida, uma, talvez duas crises morais. Até hoje não encontro explicação para elas; ou a encontro na sua extenuação física. Esgotamento pelo trabalho. Tal estado é fronteiriço da psicastenia...” Daí, da fraqueza (asthenia) da alma (psykhe) nasceu a ideia para Três vidas.
Pinto no lixo – Ana me leva pro samba depois de chegar da praia e tomar algumas cervejas com a filha Cíntia e a amiga Marília. Deixamos o carro na Hercílio Luz e caminhamos pelas ruas estreitas do centro velho até a Victor Meireles. Em frente à Kibelândia, rola o samba da Antonieta, levado por duas cantoras (que também tocam percussão), violão de sete, dois cavacos, pandeiro, surdo, reco-reco. Fico maravilhado. O surdo reverbera em meu corpo marcando o pulso binário. Todo mundo canta. Mais adiante, mais perto do antigo terminal, rola o samba do Noel, com violão de sete, banjo, cavaco, e percussão, e três cantores; samba de escola, pegada forte. Entre um e outro, ainda soltamos uma pipa. De volta à Kibelândia, encontro ex-alunos. O carinho e a gratidão se somam ao encantamento. Dia de luz, festa de sol. Ao entardecer, a lua nos vigia até o sambista puxar Olê olê olê olá / Lula Lula. O samba termina às 19h pra cidade dormir. Voltamos pela Expressa Sul. De alma lavada (e passada). Saravá!
Reagrupar, reocupar – Volto à universidade para assistir ao evento organizado pela Marina e pelos alunos da pós. Encontro os amigos e colegas e acompanho feliz a exposição de Wisnik a partir de uma trilha sonora, uma colagem que vai de Villa-Lobos, a Racionais, Olodum, Gil e Caetano, Milton, Pixinguinha, e do poema Inspiração, da Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade. Arlequinal. O sentimento geral é de retorno à vida depois de seis anos de horror e escuridão. Algodoal. (Mas o vírus ainda ronda)
Primavera na ilha – Os tucanos voltaram e não só. Também eles visitam a pitangueira, a partir da embaúba. Coisa linda! Arlequinal! É um daqueles dias em que de noite é assim mesmo. Saravá!
Lugar da escuta – A primeira vez que me dei conta disso era criança e me chamava atenção que minha tia Laura falava como uma máquina, sem deixar espaço para o outro que, se por um acaso, achava uma brecha pra também dizer algo, percebia logo que ela não ouvia, esperava apenas sua hora de voltar a falar. Encontrei muita gente assim pela vida e aprendi que muitas vezes (quase sempre) é melhor ouvir do que falar. No evento que me levou de volta à universidade, ouço Diana (Klinger) fazer referência a um texto do Xande (Nodari), Lugar da escuta, depois de sua deliciosa leitura sobre arte indígena – causou mal-estar o quadro de Denilson Baniwa, Reantropofagia, que mostra a cabeça de Mário de Andrade em uma bandeja junto com Macunaíma. Em casa, procuro o texto na (não, não uso o gúgou e sim o patopatovai) internet e acho na página amiga da Escola Brasileira de Psicanálise, seção sul (lugar da escuta por excelência). Obrigado, Xande (aquele que me fez a pergunta durante o almoço); sinto-me em dívida, ligado, atado pelo afeto que põe em marcha as leis da casa, a economia. Saravá!
O verme vive – Sábado, indo pro samba da Antonieta, no Centro, sofro pela primeira vez a hostilidade dos enfezados fascistas. Descendo do viaduto, de carro, para ter acesso à Expressa Sul, vejo um SUV branco, grande, desses importados, passar por mim muito rápido e um homem jovem, branco, colocar quase meio corpo pra fora da janela pra gritar: petista filho da puta (meu carro tem um adesivo do Lula na janela traseira). Vale lembrar que no Estado onde o verme tem ampla maioria, a Escola Antonieta de Barros, construída nos anos 40, está abandonada há 13 anos. É na frente dessa escola, que homenageia a professora, jornalista e primeira deputada negra do Brasil, na rua onde nasceu Victor Meireles, que rola o samba.
Mãe-criança – E mais uma vez Haydée me surpreende. Convido-a para ir ao samba e ela aceita entusiasmada, dizendo que sabia sambar. Como assim?, digo eu. E ela me mostra, levanta-se da poltrona e dança, jogando os pés alternadamente para a frente. Eu ia sambar na cidade, na frente do Municipal, na 13 de Maio, conta. No Bafo da Onça? Não, na rua. Minha mãe me levava, era menina, me misturava às pessoas e saía sambando pela Avenida Rio Branco. Aprendi sozinha, vendo. Tinha jeito. Não, meu pai não gostava.
Forró – Vistos à distância, os pares alongavam-se na terra roxa levantada, como labaredas fantásticas nesse ambiente poeiroso. Os negros giravam como sombras alucinadas. (...) Sostras multíparas, de idades equívocas, tão sorvadas e escorridas, como se tivessem sido passadas na moenda, cirandavam como cabos de vassoura, varrendo o chão empoeirado. (...) Mulatinhas de lábios roxos, como se tivessem sido mordidos, vivas e engraçadas, à espera do amor putrefatório. E as negrotas oleosas, borboletas escuras, com cravos vermelhos no seio, como a carne acesa em brasa. (...) Zoava um contentamento de passarinho solto... (...) A cachaça ia pegando fogo à sensualidade mestiça. Chocavam-se os peitos eriçados. Barrigas sumidas procuravam encontrar-se na ironia das umbigadas. Agitavam-se, aos saracotes, as coxas frenéticas, nas agarrações dos pares safadíssimos, os homens de cabeça levantada e as mulheres cabisbaixas. (A Bagaceira, José Américo de Almeida, 1928)
As lavadeiras – Lendo A bagaceira me chama a atenção o episódio de amor entre Lúcio e Soledade, quando ela escapa para o batedouro (pedra lisa e inclinada em que as lavadeiras batem as roupas, daí, lugar onde se lava roupa) – “as que vinham chegando desatavam com as trouxas um mundo de intimidades”. Imediatamente, lembro das lavadeiras de Jorge de Lima – “O braço valente arroja o pano contra a pedra de bater, e a axila cobre-se e descobre-se, piscando a tentação de arrochos e rendições cheias de saciedades” (A mulher obscura) –, das de Aluísio Azevedo, no Cortiço, mas também das de Zola, em L´assommoir, até que se abrem em minha memória as imagens do Fausto, de Sokurov, que vi pela primeira vez em Mar del Plata, no festival de cinema, lá por 2012, em visita à Ana. Exatamente, a cena no batedouro, toda em tons pastéis; Fausto entra com Mefistófeles nesse mundo de anáguas, mulheres seminuas, risos e conversas em um ambiente úmido e vaporoso e aí, diante do horrendo personagem, o coisa ruim, que se despe para entrar na água, encontra Gretchen – há ainda a belíssima cena de mergulho no rio, quando Fausto a surpreende na margem e, abraçado a ela, se joga nas águas. Tibum nos peraus. Saravá!
Paris change – Hoje entro pela primeira vez nesta temporada no mar. O ipê (handroanthus heptaphyllus) está todo florido e a grama verde vai sendo coberta pelas flores rosas. Um espetáculo que dura pouco. Os tucanos vêm agora com frequência (um casal) e esses dias surpreendi uma cotia caminhando na rua, às 5h da manhã. Encontrei-a novamente fazendo buracos no terreno atrás de casa, junto com o filhote, atrás das batatas-doces plantadas pela gaúcha (Ana Paula). Os dias se sucedem lindos, cheios de cor. A proximidade dos bichos tem como contraparte a redução de seus espaços, da mata, com o crescimento e a ocupação do bairro. A classe média que ocupa os prédios que vêm sendo construídos há alguns anos (não havia nenhum nos anos 90, nem as ruas eram calçadas) vai à praia com seu cachorro, apesar dos avisos e da legislação. No dia 13 de maio de 2013, Marilena Chauí, diante de Lula e Emir Sader, disse, causando o maior mal-estar: “Eu odeio a classe média. A classe média é o atraso de vida. A classe média é a estupidez, é o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista. (...) A classe média é uma abominação política, porque é fascista, é uma abominação ética, porque é violenta, e é uma abominação cognitiva, porque é ignorante”. Isso, dito três anos antes do golpe. Não esqueço a decepção ao voltar a Maceió, que conheci nos anos 80, há dois anos e ver a cidade abandonada, o centro, e a orla tomada de prédios de cimento e vidro, com grades e portões. Estilo classe média. Xô, coisa ruim!
Delírio coletivo – Será que há um surto psicótico coletivo? Se existe, seria uma boa explicação para as manifestações fascistas pelo país. Bloqueios nas estradas com apoio da polícia do verme, declarações escrotas de “autoridades” civis e militares, malucos que tentam impedir os caminhões de seguir viagem grudados na carroceria, gente rezando diante dos muros dos quartéis pedindo intervenção militar, cenas que seriam hilárias, não fossem o retrato de um país (e não é só aqui) doente, cego, violento, insano. O adágio do momento é: Perdeu, mané. Não amola!
Coisas da vida – O vírus vai voltando devagar, o verme, esperneia como uma lesma sobre a qual se joga sal.
O valor da derrota – A tal da copa fora de estação, no Qatar, tem trazido algumas surpresas, como o 2 a 1, de virada, que a Arábia Saudita, azarão total, deu na Argentina. A seleção brasileira joga daqui a dois dias e há muita discussão sobre apoiar ou não um time que usa a camisa identificada com o fascismo do verme e que tem como craque um menininho rico mimado que votou no esgoto, no chorume. Seria bom perder, talvez uma boa lição para esses lunáticos que foram derrotados pela aliança de partidos organizada pelo Lula e querem intervenção militar, chorando na porta dos quartéis. O 7 a 1 que a Alemanha deu no Brasil em 2014 nos fez cair na real: esse futebol gentrificado, aburguesado, organizado por máfias (FIFA, CBF etc.) e entregue ao capital (os estádios viraram arenas com nome de empresas, argh) não tem mais a mesma importância. Importante é acabar com a fome, distribuir a renda, proteger as florestas, empoderar os povos originários, garantir o acesso dos pretos pobres das periferias à política, à educação, fazer a reforma agrária. A seleção não é mais a pátria de chuteiras. Temos mais o que fazer – vai te catar.
Depois da chuva – O dia amanheceu com sol, o vento virou de nordeste pra sul. Cedinho, o casal de aracuãs trouxe dois filhotes pra comer pitanga. Poucas flores rosas permanecem no ipê e, na grama, vão perdendo a cor dando lugar ao verde de sempre.
Depois do jogo – É, parece sinal dos tempos. A seleção jogou bem, com dois gols do Richarlison, um cara engajado nas lutas sociais, e, ainda melhor, o riquinho mimado saiu machucado e não fez gol (havia prometido que iria dedicar o gol ao verme). O Lula tem mesmo estrela.
Lucíola de Alencar – “Lúcia tinha razão. Aqueles beijos, não é possível que os gere duas vezes o mesmo lábio, porque onde nascem queimam, como certas plantas vorazes que passam deixando a terra maninha e estéril. Quando ela colou sua boca na minha pareceu-me que todo o meu ser se difundia na ardente inspiração; senti fugir-me a vida, como o líquido de um vaso haurido em ávido e longo sorvo.” Saravá!
A inundação – Uma noite de muita tensão. Chove há três dias e à noite caiu muita água; dormi inquieto, com sonhos estranhos, acordando muitas vezes com o barulho das trovoadas e da chuva forte que batia na janela. A cidade está um caos, ruas interrompidas, barreiras, deslizamentos, gente desabrigada. Agora o sol aparece, a temperatura sobe, 26 graus, o vento vai mudando de direção, soprando de norte, empurrando a frente para o sul. Assim como o verme, a lestada deixou um rastro de destruição. Já é dezembro.
Oftalmofilia – Sob o olhar de Raquel o olhar de Lia (Jorge de Lima).
(Actualización diciembre 2022 - febrero 2023/ BazarAmericano)
Dibujo de Marcelo Praça