diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Diário de viagem
Um tradutor de volta à Ilha de Santa Catarina
Outono no Desterro, ano III da peste e IV do verme (dois anos depois, apressado e infiel) 

“Capitão-mor perdi-me no mar. 
 Onde é que fica a minha ilha?”

Jorge de Lima

“Tanto ontem como hoje, bem
cedo, ouvimos cantar as aracuãs,
sentinelas avançadas dos campos”

Gastão Cruls

“Livros (...) são cartas
espessas aos amigos”

Peter Sloterdijk

 

Algumas valsas – Deixo com tristeza a Alemanha que, já na ilha, vejo se entregar em sacrifício. Desta vez, são jovens, verdes, que destinam o dinheiro do país às armas, que ameaçam a segurança de seus concidadãos em nome (?) de uma civilização que decai. Na ilha, a situação não é melhor. Mas ainda há o outono, o tapicuru preto, algumas valsas e, tomara!, em outubro, uma nova volta do parafuso. Saravá!

 

Viagem atlântica – Debruço-me sobre o diário de Ernst Jünger escrito em 1936, durante uma viagem ao Brasil no vapor Monte Rosa, de 19 de outubro a 15 de dezembro. Já comparei em um texto o deslumbramento de Jünger no alto da Boa Vista, no Rio – Morada do Espírito, como aparece no subtítulo do livro – com o da personagem da professora de alemão, no mesmo lugar, em Amar, verbo intransitivo (idílio), de Mário de Andrade, cuja primeira edição aparece 10 anos antes da viagem do escritor, polemista e naturalista alemão. Sobre o diário de Jünger, Antonio Candido escreveu um ensaio (A viagem de Jünger). Ofício de tradutor.

 

Dar o tempo – Desde que voltei à ilha, visito Haydée, que está com 93 anos, três vezes por semana. Vamos juntos à feira, almoçamos, conversamos sobre as notícias (fica surpresa cada vez que conto, de novo, que há uma guerra na Ucrânia e que o Brasil vive um caos de ódio, arrogância e crime com o governo fascista). Pela primeira vez, ela me ouve sem retrucar. Apesar do medo por estar perdendo a memória, está sempre de bom humor e nos últimos dias adotou um risinho de passagem que a deixa ainda mais encantadora. Todos os dias pergunto, dormiu bem?, ao que ela responde, muito bem, sempre durmo bem; retruco então, mas você mente, né?, e ela rindo, admite, fingindo resistência: às vezes.

 

Estar no tempo – O inverno se faz anunciar temporão. Chove na ilha em razão da presença de um ciclone extratropical. As caminhadas vão ficando mais difíceis, exigindo um cálculo que permita saída e chegada no intervalo de duas pancadas de chuva. Com Joca, faço a revisão de Cadernos de Pripyat, de Carlos Ríos, pensando que nunca a Ucrânia esteve tanto no noticiário. Os nomes que pareciam tão distantes em 2012, agora (e desde 2014) povoam o café da manhã, o almoço e o jantar. Para além da maluquice nuclear de Chernobil, muito perto de Kiev, há bunkers de quatro andares no porto de Mariupol, embaixo de uma imensa siderúrgica dos tempos soviéticos, batalhões de nazistas, uma Galicia que não está na península ibérica, escadarias eternizadas pelo cinema, vastas estepes e uma guerra de informação. Poposnaya, Sievierodonestk, Donetsk, Kharkiv, Lugansk, Lyschansk, Dnipro, Kherson, Zaporizhzhia, Kramatorsk, Odessa. Tak, tak.

 

Tempos de afora – Sonha. Caminha com ela por uma arquitetura sinuosa e labiríntica. Subitamente, encontra a saída e logo está do lado de fora. Mas, sozinho. Acorda. A sensação de angústia se foi.

Pepe Escobar diz que o objetivo último dos EUA ao armar os ucranianos para a guerra desde 2014 era isolar a Alemanha da Rússia. Assim, o império que decai garante que a presa ferida se mantenha em seu poder e afunde com ele.

A Alemanha me assombra há tempos. Enter the ghost, exit the ghost. A história é uma mãe severa. Saravá.

 

As ruínas do tempo – “Um soldado alemão assobia a canção que havia escrito para sua mulher antes de morrer no front russo, em 1943. As notas rabiscadas com pressa em uma pauta suja de sangue foram encontradas por um soldado russo que meses depois participou da tomada de Berlim. Sei disso porque minha vó cantarolava os primeiros compassos, sempre os mesmos, quando já velhinha e esquecida caminhava às cegas pela casa, e porque a história do vô era conhecida por todos na família, todos sabiam sobre a canção encontrada junto ao corpo do soldado alemão em algum lugar na Ucrânia. A partitura da canção Du wirst nicht mit mir, wann der Winter kommt foi parar no Museu da Guerra de Berlim, em um desses arquivos pessoais esquecidos em alguma gaveta, depois que meu avô russo morreu. Ainda não tive coragem de ir ao museu procurar. Por enquanto, minha herança são esses poucos compassos que se repetem, que não vão adiante, como um disco de vinil arranhado.” (Fragmento retirado de um jornal)

 

Viagem atlântica – A chegada ao Amazonas: “Por volta do meio-dia, o vapor deslizava ultrapassando o equador; um sinal de sirene anunciou o momento. Logo em seguida, surgiu terra à esquerda. Como para dar as primeiras boas-vindas a esse novo lado do mundo, pássaros fabulosos sobrevoaram o navio. Seu corpo e suas asas em forma de foice eram profundamente negros, a cabeça e o pescoço esticado para a frente, brancos de ofuscar. Sua aparência, porém, era fabulosa porque nessa figura meio gaivota meio garça balançava um longo rabo de faisão. 

O azul do mar se tinge pela manhã de verde pálido. A água então se torna cada vez mais turva e, finalmente, amarelo-barro. O navio flutuava no Amazonas, sem que se tivesse a impressão de uma viagem fluvial – deslizava pela margem esquerda, correnteza acima, como em uma costa marítima. A bordo, 4 de novembro de 1936” (Ernst Jünger)

 

Apressada e infiel – “Assim, pois, define-se a justaposição dos contrastes: a natureza primitiva da planície amazônica, pelo encanto lendário de suas selvas e aparato oceânico de suas águas fluviais, tem sido motivo estético fartamente explorado pelos versadores da apressada e infiel literatura de viagens”. (Amazonia, Araújo Lima) 

“Na composição de um romance, o escritor é dono do assunto. (...) Na literatura de viagens, nada disso... O assunto governa o escritor, os episódios surgem de repente, as figuras desenham-se por si... ou se embiocam. (...) Se o escritor não é artista, o romance é um caso policial e a narrativa de viagem, um relatório.” (prefácio de Roquete Pinto a Amazônia que Eu vi, de Gastão Cruls)

 

Tempo de viola – Desde que deixei a sala de aula, passei a me dedicar mais ao violão. Além de retomar páginas clássicas do violão brasileiro, de Dilermando Reis, João Pernambuco, Ernesto Nazareth, o Choro nº 1 e a Mazurka-Choro, de Villa-Lobos, detenho-me em peças de Guinga como Canção desnecessária, Par constante, Choro pro Zé, Noturna, Abluesado, Canção da Impermanência, Noturno Copacabana, Igreja da Penha e Cine Baronesa. Seu feitiço, creio, parece estar na convivência do mais tradicional (Senhorinha) com caminhos harmônicos e melódicos singulares, além da montagem sempre inusitada dos acordes, com recurso às cordas soltas e inversões insólitas. Refaço o Noturno Copacabana, que havia lido e analisado no quadro, letra e acordes, quando ainda no Baixio dos Francos: noite à beira-mar/ homens vêm montar/ centauros de silicone. 

 

Tempo fora dos eixos – Haydée se levanta mais uma vez da poltrona reclinável para arrumar o relógio de parede, daqueles ainda de corda e pêndulo. Confere a hora, arrasta com o dedo os ponteiros (nem sempre pro lugar certo) e, satisfeita, põe a correr o pêndulo. Não demora e ele está novamente parado. Há três ou quatro relógios na sala, cada um parado em uma hora diferente. Que importa?

 

It´s been a long time – Wenn ich aus Honolulu wäre... Se eu fosse de Honolulu, seria uma rima, aber keine Lösung.

 

Canção intempestiva – A Tita me contou que sua irmã lhe havia mandado um link com uma dica de um guru indiano. É que ela, a Tita, em um papo sobre os acontecimentos  (guerra na Ucrânia, o verme, etc) disse que se sentia inadaptada ao mundo e, por isso, a dica do guru –faz um buraco na terra, põe os pés, cobre e fica lá de 30 a 40 minutos– que acabou gerando a canção: Enterra / os pés na terra / e berra / afunda / até a bunda / enterra / Abrace o planeta / andando de lambreta / deixando os caretas / pra trás / Enterra / os pés na terra / e berra / é agora / qu´eu cresci / mamãe.

 

Onde dormem? – Os papagaios, nos eucaliptos que estão na quina noroeste do campo onde pousavam os aviões da Aéropostale, na saída da rua pra rua da Capela, e também no bosque que cobre o morro do Lampião, no fim da rua. Já as maritacas fazem ninho nas antenas de telefonia celular, na esquina da Capela com a Pequeno Príncipe. O dia tem como limites a algazarra que fazem ao amanhecer e ao anoitecer. Na ausência do suiriri, que já migrou pra lugares mais quentes, é o seu aparentado bem-te-vi que me dá bom dia. Hoje, na caminhada até o mar, um canarinho pousou na minha frente: no alto dos postes, urubus e tapicurus, no campo, os quero-queros. Saravá.

 

Tempo de afeto – Da Argentina, me chegam presentes: os deliciosos e surpreendentes libritos da Oficina Perambulante; um achado do amigo Nemesio Gamboa, Un reino junto al mar, de Santiago García Navarro, um texto que aproxima o Rio de Mar del Plata; e o último (?) de Carlos Ríos, Falsa Família que leio com aquela gostosa impressão de familiaridade e estranheza (tem na capa e no marcador a figura de um cachorro, um atributo de outro doce vampiro, Mario Bellatin). Surpresa me chegou também por um email (essa coisa meio velha) intitulado Quem costurou as roupas da Semana?: de Marina dos Santos Ferreira, Corte e costura, um brilhante artefato feito de memórias da avó, instruções de seu manual de costura, pequenos textos, poemas, imagens. Leio como se não conhecesse a autora, encantado com a montagem, com a maturidade, com a sensibilidade poética.

 

Time is out of joint – A foto mostra uma camponesa ucraniana da região do Donbass, com vestido longo, a expressão séria, os cabelos cobertos por uma touca verde, e o corpo parcialmente escondido pela bandeira vermelha com a foice e o martelo. Ana, este seria seu nome segundo uma matéria do Moscow Times, havia saído de casa para encontrar os soldados do exército da Ucrânia, no início de abril, logo após a invasão das tropas russas. Com a bandeira soviética.

 

No contratempo – “Cê tem um jeito verde de ser / e eu sou meio vermelho” (Guinga e Aldir Blanc)

 

Novela interrompida - Inhanduí. As imagens se sucediam umas às outras embaralhando as paisagens que acabavam se superpondo como se alguém tivesse dobrado o mapa comprimindo tudo em um ponto só. A coxilha, o vale acima do mar, a zona da mata formando um desenho geométrico de planos superpostos que se deslocavam uns na direção dos outros três loucadamente. Uma brincadeira diabólica. Rios, arroios e ribeirões, córregos e regatos, se misturavam com seus nomes tupis, puris, guaranis e mesmo, algumas poucas vezes, portugueses: Itapevi, Muriaé, Mundaú, Jararaca, Caverá, Jaguari, Paraibuna, Guaratinguetá, dos Lemes, dos Motas, Inhaúma, Canhoto, Caiboaté, Capivari, Itapororó, Ibirocaí, Ibicuí, Paraitinga. Uma sucessão infernal de águas se derramava dos planos em cascatas. Chovia naquele dia de maio. O hospital no Catumbi nada tinha a ver com os rios e as paisagens, ou melhor, tinha sim, porque era pra você que eu dizia esses nomes todos, fora de ordem, misturados, tentando te explicar alguma coisa que ainda não era clara para mim. O mapa dobrado juntava as águas do Ibirapuitã àquelas do Paraíba do Sul e ambas às do Mundaú, constituindo uma geografia nova e surrealista que projetava espaços insólitos sobre superfícies inverossímeis. Um mundo de águas, em planos dobráveis e móveis, vazado em uma hidrografia insana. Sim, eu sei, você estava vindo, adventícia, de um pequeno mundo de águas, de olhos fechados, ainda afluente da mãe, quando apareceu diante de mim na sala de cirurgia. Chovia e estava um pouco escuro. No entanto, você era Clara. (Overture de Três Vidas)

 

Carta nº 34 – 23 de abril de 1952 / Procure aí no Rio a fazenda para que eu mande fazer minha roupa para o civil, pois aqui além de ser difícil achar, será muito caro. A fazenda é tropical inglês, azul marinho, brilhante, tenho informação por colegas meus que na casa Barki tem. (Alamiro, de Natal, para Haydée)

 

Miúdo pero no mucho – Quando vi estava pousado no alto da Embaúba que fica atrás do quintal. Esteve ali, parado, apenas observando e de vez em quando coçando as penas com o bico, por quase uma hora. Vendo-o pela janela da sala, me pareceu grande em relação ao gavião mais comum na região, mas esse accipiter striatus atende pelos nomes populares de tauató-miúdo, carijó do mato, gavião alma-de-gato, tauató-piranga, tauató-jandaia, gavião miúdo, gaviãozinho.

 

Intervalo de tempo – No meio do inverno, um veranico se prolonga por toda a segunda metade de julho. Céu azul, 22 graus. Vou lendo as canções de Ary Barroso antes do frio voltar: É luxo sóPra machucar meu coraçãoFolha mortaNo rancho fundoCaco Velho, sendo esta última a crônica de um valentão que topava briga de qualquer maneira, que vivia fora da lei, entre os bambas e que hoje é um caco velho que não vale nada. Gravada por Elisa Coelho, em 1934, com Ary no piano, foi regravada em 1955 por Orlando Silva. 

 

Qual é a do tempo? – Tempo, tem, pô, saravá. (Resposta a uma enquete sobre o tempo) 

 

 

(Actualización agosto – septiembre 2022/ BazarAmericano)

 

 

 

 

 




9 de julio 5769 - Mar del Plata - Buenos Aires
ISSN 2314-1646