diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Diário de Viagem
Um tradutor no Baixo dos Francos
Verão na Ilha (Ano II da Miséria Nacional), 2020 / Dias de ócio em Desterro e de viagem pelo Brasil, das Alagoas às Gerais, de Guaratinguetá ao Alegrete, até dizer chega

Pré-viagem: o ócio

 

A botânica, nesse sentido, deveria reencontrar

um tom hesiódico e descrever todas as formas de

vida capazes de fotossíntese como divindades

inumanas e materiais, titãs domésticos que não

precisam de violência para fundar novos mundos

Emanuele Coccia (A vida das plantas)

 

Ócio – cessação de trabalho, folga, repouso,

vagar, quietação, mandriice. De otium, ii, otio

tabescere, dar-se à preguiça. Ant. de negotium,

buzínis mas tb coisa, troço.

 

E nenhuma chama nos

devora tão rapidamente quanto

os afetos do ressentimento”

Nietzsche

 

 

Um outro tempo – Esse diário deveria se chamar a partir de agora “um tradutor aposentado entre a Ilha do Desterro e Francoforte do Meno”, mas a força da gravidade me faz manter o título original. A percepção do tempo mudou: vivo então em um compasso mais lento, dando atenção às pequenas coisas, escovar os dentes, regar as plantas, ouvir os pássaros abrindo a manhã, aos pequenos detalhes do ritmo, das pulsações. Isso não faz com que as coisas andem devagar, devagarinho, não, continua tudo correndo vertiginosamente rumo ao desastre. É um olhar, uma atenção, um dar-se tempo, um dar o tempo. Algo que tem a ver com a dádiva. Como o sol, como o mar.

 

*

 

Outra vez Celan – “Leche negra del alba”, vejo (e ouço) Carlos lendo o poema, a tradução de Ricardo Ibarlucia da Fuga sobre a morte, diante do computador, os cabelos encaracolados, negros, e a barba já meio grisalha, de óculos, braços cruzados apoiados sobre a mesa, camisa vermelha. “Cavamos una tumba en los aires, ahí no hay estrechez”.

 

*

 

Fim de ciclo – Faço pela última vez o percurso Campeche-Pedra Branca – a primeira foi em 2001, depois de defender a tese e ser chamado para compor a turma de professores da pós-graduação que então começava – cerca de 30 quilômetros, desta vez pra fazer o exame médico demissional. Lembro de meu pai quando, magoado por não ter sido promovido a brigadeiro, me chamou pra rasgar com ele (que alegria!) as apostilas do Estado Maior e dos cursos de doutrinação que ele fez nos anos de ditadura. Não tenho nada pra rasgar e, embora esperasse reconhecimento depois dos 20 anos, me sinto leve, livre, feliz. Ao vencedor, as batatas. Fico com o mar, a piscina, o violão, os amigos, os pássaros, a filha linda, a mulher que amo e a vida nova em um país novo (já nem tanto).

 

*

 

Meu outro avô – Entre os papéis de Alamiro (cadernetas de voo, diplomas, medalhas, etc) encontro uma carteira de motorista de Antonio Pereira dos Santos, seu pai, meu vô Santos que teve um hotel em Caxambu, Minas Gerais, nos anos 50, 60, o hotel Lopes, onde passávamos as férias de verão (e onde meus pais se conheceram). A carteira, de 1929, mostra um homem de 33 anos, como diz a página intitulada CARACTERISTICOS: Natural de D. Federal, côr branca, olhos castanhos, barba raspada, bigodes raspados, cabellos castanhos, altura 1m 62cm, estado civil casado, residente à rua Barão de Cotegipe nº 211. Seus últimos anos, passou na casa de tio Zé, em Volta Redonda, pra onde a família se deslocou com a decadência de Caxambu, em busca de trabalho na imensa siderúrgica – a monstruosa máquina de morte que é a cara do século XIX – que domina a cidade.

 

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Diário de Haydée – Tempo bom, com algumas nuvens. 22°. Chamei o Leo às 7h50, foi para universidade. Saí às 8h, passei na padaria para definir a torta, no Angeloni. Voltei, mudei de roupa e fui à ginástica. Antonio Carlos e Renata passaram para deixar as bebidas. Vieram os dois rapazes para descobrir o vazamento e arrumar a cisterna: era um dos joelhos que havia quebrado. Almoçaram aqui: Norma, Leo e Clara. Logo depois chegaram Renata e Antonio Carlos com as garrafas de vinho e ficaram fazendo hora até às 14h40. Fui com Norma e Leo assistir a defesa de tese de Antonio Carlos, mas tive que vir às 16h30 para arrumar a casa e esperar a comida que vinha da P. das Famílias. O pessoal chegou quase 20h. Antonio Carlos conseguiu A com louvor. Vieram umas 20 pessoas: os últimos saíram já era mais de meia noite. Leo dormiu aqui.

 

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A riqueza da linguagem – Ok Ok Ok.

 

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Fundamentalismo cristão – Desço a rua para caminhar, sábado de carnaval, e encontro uma passeata. A professora Elenir de Siqueira Fontão, diretora da Escola Básica Januária Teixeira da Rocha, no Campeche, onde a Clarinha estudou e foi alfabetizada, havia sido assassinada pelo ex-namorado com uma facada no pescoço dois dias antes (mais um crime contra as mulheres nestes tempos de miséria nacional). A passeata termina em frente à escola, onde é lido um manifesto, repetido por todos os presentes. No meio da manifestação, vejo sair uma mulher, segurando uma bicicleta, com cara de indignada, reclamando que só havia palavras de ordem e nenhuma oração. Na hora, pensei: mas como assim? Tantas orações coordenadas e subordinadas, o que ela queria? Se queria rezar, ora, o que a impedia? Não, o fundamentalismo cristão quer que todos rezem, esquece que o Estado é laico e que há mais deuses (e nenhum) do que o homem barbudo do velho livro. Não me parece que a intolerância seja uma parte da doutrina do cristianismo (embora os cristãos tenham sido intolerantes ao longo de toda sua história), não era o amor seu fundamento?

 

*

 

Juan Falú – Fui fisgado via Yamandu, num vídeo em que tocava Como el aire. Procurei o autor (a internet em geral não se preocupa com os autores das canções) e achei vários vídeos de Juan Falú tocando a zamba, sempre de uma maneira um pouco diferente. A partitura que encontrei era, natürlich, também a escrita de uma versão. Venho então, desde o inverno alemão, lendo e ouvindo (me goschta a versão de Microconciertos), anotando variantes na partitura e me deliciando com as frases tão argentinas dessa zamba. Ah, vale lembrar que havia ficado impressionado com seu violão quando La Porrúa me mostrou há anos, em Mar del Plata, um disco dele com Liliana Herrero.

 

 

*

 

Biscoito com feitiço – Em um papel timbrado do Ministério da Aeronáutica, Diretoria Geral de Saúde da Aeronáutica (Haydée trabalhou lá desde a morte de seu pai, José), está essa carta, sem data (no envelope apenas o nome Alamiro, mas por outra carta dá pra dizer que é de fevereiro de 1950) que precede a prova que ele fez para entrar na Escola da Aeronáutica: “Miro // Aqui vão os biscoitos que prometi a você. Pode comê-los sem susto, pois não contêm nada que possa fazer mal a você. Só peço-lhe uma coisa: guarde a lata. // Desejo-lhe felicidade na prova e tenho certeza que nessa você se sairá muito bem. Estarei aqui rezando por você. Estou esperando um telefonema na quarta-feira à noite para me dizer qualquer coisa sobre a prova. Você não deve pensar em mais nada senão em Física e fazer a prova despreocupadamente. // Tem se sentido melhor? Já foi ao médico? // Não vá achar a minha carta seca; eu sou assim mesmo. Não sei demonstrar com palavras o que sinto e creio que você sabe muito bem disto. Acho que você prefere como sou, não é verdade? Até sábado // Um abraço carinhoso de // Haydée // PS – Olha que eu pus feitiço nos biscoitos.” Há também um pedaço de papel arrancado de um caderno onde está escrito (por Alamiro, certamente quando já estavam casados), de um lado, Coro dos ferreiros, coro e orquestra da RCA Victor, e do outro, Haydée Santos: // Conheci 12–III–48// Começamos nosso namôro: 4- IV-948; Brigamos em 20-VI-948; Reatamos 24-VIII-948; Brigamos 30-X-948; Reatamos 2-I-49 (nesse ponto, falta um pedaço do papel), Fica.......os em 24-XII-949. Há ainda um santinho, um papelzinho com a imagem de São Judas Tadeu, e do outro lado uma “prece a São Judas Tadeu para ser recitada em grande aflição ou quando se parece privado de todo o auxílio visível, e nos casos desesperados” (engraçado, pois meus pais nunca foram lá muito católicos...).

 

 

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Ressentimento – Segundo o dicionário, é o ato de ressentir-se de alguma ofensa ou palavra, lembrança da ofensa recebida, ou sentimento reservado do mal que se recebe de outrem. Segundo Nietzsche, o homem do ressentimento é aquele tomado por sentimentos reativos (em Zaratustra está representado pelo anão, o espírito da gravidade, que aparece na terceira parte, se lamentando da vida), pelo ódio e pela vingança, é o sentimento dos fracos que envenena a alma (e se a alma é pequena, lembra o poeta?, não vale a pena), sentimento contrário à vida. É esse o afeto disseminado hoje por figuras grotescas como o capitão expulso que representa, não esqueçamos, milhões de ressentidos que votaram nele nas últimas eleições. Incluídas aí, infelizmente, pessoas muito próximas.

 

*

 

Na porta de casa – tem um ipê amarelo plantado pelo Gabriel. A árvore da Mata Atlântica aparece no Sul e Sudeste do Brasil, do Espírito Santo até Santa Catarina, e tem várias espécies. É conhecida tb por pau-d’arco-amarelo, piúva-amarela, ipê-ovo-de-macuco, tamurá-tuíra, ipê-pardo, ipê-do-cerrado, opa, ipê-do-morro, ipê-tabaco, ipê-amarelo-cascudo, ipê-açu, aipe. Na porta de casa. Pelo Gabriel. Saravá!

 

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Os golfinhos – Na praia cedinho, um dia antes da viagem pro Rio, vejo de repente, logo depois da arrebentação (mar calmo, com ondas pequenas, águas claras), um monte de golfinhos. Vinte graus, ainda estou de moleton e chapéu. Me aproximo de um jovem que também assistia ao espetáculo e que me explica que eles estão comendo, aqueles situados um pouco mais longe da arrebentação afugentam os peixes para esses que esperam, surfando, que o desjejum seja servido. Chama-se Gabriel, o jovem com forte sotaque que veio de Santana do Livramento há três anos e também se emociona com os movimentos dos golfinhos.

 

*

 

Dias de viagem: a peste (o negócio)

 

(...) Vi afinal que um pobre ser abjeto

Um crime cometera. Reconheci-me.

Sonetos, Jorge de Lima

 

Pode-se dizer que, a partir desse

momento, a peste nos preocupou a todos.

A Peste, Camus

 

Isto é para quando você vier.

Nove noites, Bernardo Carvalho

 

Rio que mora no mar – Primeira parada antes do Nordeste, chego uma vez mais a minha cidade onde me espera uma inundação de afeto: Marcelo e Simone, Anke que vem da Alemanha, Ana, Carlos, Juan, Nacho, Laura, Clara y Lisandro, da Argentina, Marina e Heitor, como filhos meus, Denise. Chovia quando cheguei na segunda-feira, dia 2 de março, e o avião teve de arremeter o pouso no Santos Dumont. Andando pelo Flamengo, me delicio com o português dos cariocas. No Aterro, com Marcelo, do Flamengo até o centro, reencontro as árvores, em grupos, da maioria não sei o nome, mas aprendi com Heitor: abricó-de-macaco, formidável, sensacional, bacana, singular, espetacular ou, como dizem os alemães, hervorragend. As notícias da peste vão chegando cada vez mais rápido e em maior quantidade: desde o aeroporto de Francoforte, no final de janeiro, ela se aproxima, visível na transformação do dia-a-dia.

 

 

*

 

Na biblioteca municipal – Em União dos Palmares, encontro em uma revista a tradução de Stefan Baciu de um dos poemas de Invenção de Orfeu (o quinto do Canto Segundo). In diesem Grab aus geheimnisvoller Lava / liegt eine schöne Frau, sie leitete / ihr Haus, sie webte Wolle, ihr Sohn war Matrose / ihr Mann hat manche Träume fabriziert (Neste sepulcro de secreta lava / jaz formosa mulher, governou sua / casa, fiou lã, seu filho era marinho, / e seu homem uns sonhos fabricava).

Sie alle drei, sie tanzten stets narzissisch / sie machten Lieder und erzeugten Schiffe. / Sie trugen namen von Ertrunkenen. / Familie von beschatteten Meerestiefen! (Os três bailavam sempre narcisados; / sabiam fazer cantos e navios. / Os nomes deles eram de afogados. / Ó família de pélagos sombrios!)

Nun heiratete der Sohn mit einer lieben Frau, / und diesem Paar entspross auch ein Matrose. / Ozeangründer war sein Sohn. (Casou-se o filho, teve um par querido, / e deste par vingou um marinheiro. / Fundador de oceanos foi seu filho.)

Und er – er schläft in dem verbrannten Meer. / Aus seinen Hüften spriessen Segelflügel, / man sigt in Tauchern auf Meere ohne Kompass. (Ele é que dorme nesse mar combusto. Saem de seus flancos asas de veleiro, / canta-se em búzio pelo mar sem bússola.)

 

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Terras de quilombo – Chegamos no fim da tarde à União dos Palmares, na Zona da Mata alagoana, a cerca de duas horas do aeroporto Zumbi dos Palmares. À medida que entramos, vamos descortinando um território muito verde, de natureza exuberante, onde havia uma floresta tão densa no século XVII que evitava ou atrapalhava a entrada dos exércitos brancos (ajudados por índios e escravos) que tentaram 17 vezes destruir Palmares (“A floresta era ínvia, impenetrável, desconhecida e hostil”, E.C.). A cidade pobre e miúda, incrivelmente barulhenta (há alto-falantes nas lojas e nos postes que vomitam músicas variadas e propagandas), fica ao lado da Serra da Barriga, onde está o memorial. Um caminho lindo, subindo, 500 metros acima da cidade, cheio de mangueiras e jaqueiras, muitas com um pano branco amarrado no tronco, cuidado retocado todos os anos, de 19 para 20 de novembro, pelo povo do candomblé e de várias instituições dos afro-brasileiros pelo país. Estamos quase sozinhos. Dali, se vê ao longe o rio Mundaú.

 

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Janelas fechadas – A casa de Jorge de Lima, o sobradão da praça da Matriz, está sendo reformada. Cinco famílias passaram por ela depois dos Lima. Uma delas construiu uma pequena casa grudada que tampou a janela de onde o poeta via a Serra da Barriga. O teto caiu, não há mais o segundo andar. As pessoas são extremamente gentis. Seguindo do sobrado em reforma, pela rua Correia de Oliveira (antiga rua do Comércio), chegamos à casa de Maria Mariá, professora que lutou, entre outras coisas, contra a demolição da velha igreja da Matriz, ideia, que acabou se concretizando, de dois padres canadenses que queriam uma igreja moderna. Passamos na antiga estação de trem, tudo meio abandonado, mal cuidado. Na outra praça, Antenor Uchôa, às 18h, os pardais fazem uma enorme algazarra voando e pousando nas árvores (gravo no celular). Pergunto a uns homens que jogam dominó que árvores eram aquelas: “Quer saber o nome do pau? Sei não.”

 

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Dias de quarentena – No telefone com Haydée, conto a ela meus planos de escrever as três biografias; falávamos de Guará e de Caxambu quando as aracuãs começaram a gritar bem perto. Fico quieto para que ela ouça e ela então me conta: “um dia depois de seu pai morrer, ouvi esse barulho que vinha da varanda, duas vezes”. Diz ainda que sempre que quis ir a Alegrete (José, seu pai, havia prometido), acontecia alguma coisa que impedia a viagem. Agora, novamente, a peste adia minha ida à cidade onde ela nasceu. Guará, Caxambu, Alegrete. Percurso ainda a realizar. Intervalo da peste: tempo da narrativa.

 

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Livro dos Sonetos – (...) Vi afinal que um pobre ser abjeto / Um crime cometera. Reconheci-me. (JL) Que crime teria cometido este homem atormentado? Depressão por volta de 1937 e, de novo, em 1948, 49, quando foi internado em uma clínica na Floresta da Tijuca. Um reconhecimento do tormento por que passava nessa época, a culpa pelo “livro errado sobre raça” por amor à língua alemã, as imagens que reapareciam, a draga, Celidônia, Elisa, o galo da igreja do Rosário. Em alemão, Die Schuld abarca tanto os sentidos de culpa quanto de dívida. Checar em Poemas dispersos, Ano 2449, o medo do julgamento do futuro: Eu os vi e os ouvi, ó brasileiros, / eram como nós, sob as mesmas estrelas, / mas haviam nascido várias vezes para nos esquecer, / para nos esquecer e não nos odiar. Publicado em 48, no Diário de Notícias, sobra de A túnica inconsútil.

 

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Serra da Barriga – Lá de cima, dá pra ver toda a região, os morros, os campos que antes estavam cobertos de cana e, antes ainda, de floresta (“... de árvores frutíferas (...) jaca, laranja, manga, lima da Pérsia, lima de umbigo, laranja-cravo, fruta-pão, côcos da praia, abacate, pitanga, limão, melancia, mamão, ananás, abacaxi, araçá, pinha, fruta do conde, banana, goiaba, joá, ingá, cajá, jenipapo, trapiá, jaracatiá, pitomba, sapucaia...”), o rio, o horizonte a perder de vista. De binóculo, talvez, pudesse ver a janela tapada do poeta, lá embaixo, na cidade de União: “Serra da Barriga! / Te vejo da casa em que nasci.” De onde, também, ele viu os acendedores de lampião. Hoje, a serra “buchuda, redonda, / do jeito de mama, de anca, de ventre de negra!” exala uma energia difícil de ignorar. A terra e o verde que a cobre denunciam a cada minuto a presença dos seis mil africanos e afro-brasileiros (e índios e mestiços e brancos) que ali morreram defendendo Palmares. A história escolar dos heróis (Domingos Jorge Velho) é a história dos assassinos.

 

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Dias de quarentena – Haydée me conta que escondia as drogas (morfina, acho, de José) nos vasos de planta da casa: “Fazia um buraco e botava lá embaixo. Acho que eram comprimidos, na primeira vez, pensei em jogar pela janela, mas depois pensei, vai alguém pegar, usar. Quando ele chegava, procurava, procurava. Nessa época, sentia que a coisa lá em casa não estava bem. Ele e minha mãe já não se davam, ele tinha essa mulher, não sei muita coisa sobre ela, encontrou-a lá na Aeronáutica, era amante de alguém lá. Ela ligava lá pra casa e uma ocasião, olhei pra ele e disse: Gilda, não sei se esse era o nome dela, a fulana ligou pra mim e me ofereceu um homem. Ele me olhou, deu meia volta e desceu a escada. Morávamos na Tijuca, na casa de um conhecido, depois mudamos outra vez, pra Botafogo, rua Dona Mariana, um apartamento bem bonzinho onde fiz 15 anos. Três anos ficamos na rua Dona Mariana. Sinhazinha, mãe de Odette, morava conosco, e dizia pra Odette que estava tudo errado. Pra ele, não, não dizia nada. Depois, em 48, mudei porque seu pai era uma pessoa muito boa. Imagina que ele queria falar com mamãe pra eu voltar pro Armênio. Negativo, disse. Isso é problema meu”.

 

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Em Maceió – Descemos do táxi na praça Sinimbu e logo pergunto a dois trabalhadores onde era a casa de Jorge de Lima. Não sabem. Cruzamos com um guia e repito a pergunta. Não sabe. Andamos pela praça olhando as casas e logo vemos a placa “Casa de Jorge de Lima”. Está trancada, mas as janelas estão abertas. Toco a campainha, bato palmas, por fim aparece alguém. Não, não podemos entrar, o teto desabou, é perigoso. Com alguma insistência, a moça nos deixa entrar e ver a casa pelo lado de fora. Será reformada, informa. Está suja, maltratada, embora (ou talvez por isso) abrigue a Academia Alagoana de Letras. A moça me diz que Jorge morou pouco ali, mas pelo que sei (parece que tinha casa também em Pajuçara) viveu ali desde que, formado, voltou a Alagoas (1914/15) até ir pro Rio (1930). Ali, escreveu Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien, o livro que ia incomodar sua mente como um vírus. Vejo a casa onde foi escrito o livro errado sobre raça / por culpa e dívida por amor à língua alemã / A culpa a língua a casa e a dívida / tudo parte da serra-sintoma da cena primária / Vejo a casa. O teto caiu (Viagem à União)

 

 

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Leituras da quarentena – “Ao aproximar-se do porto, as faluas que deveriam buscar os passageiros cortavam as águas em direção ao navio. Em movimento ritmado, os negros, dirigidos pelo capataz, remavam, com o dorso suado e desnudo, reluzindo ao sol. Durante muito tempo, na Guanabara e em Santos, em virtude das más condições do cais, o passageiro assustado era carregado ao colo do remador que fazia atravessar a lama fétida e os baixios inundados e sujos, depositando-o em terra firme.” (Viotti da Costa, Da senzala à colônia, 1966) “Oberveterinär Gottschalk wurde von einem Neger an Land getragen” (Uwe Tim, Morenga, 1978).

 

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A alegria é a prova dos nove – Kleber nos leva de lancha até os corais, uma longa faixa, curva, que protege a praia, e nos deixa por um tempo em um banco de areia, ainda bem longe da praia. Com água pela cintura, avistamos a lonjura do mar, enquanto Kleber conversa com um pescador que joga a rede. Peixe, só pouco (pra tanta rede). Em Baía Grande, onde estamos, cerca de 15, 20 minutos de Maragogi, é grande o contraste entre a beleza da natureza e a pobreza da gente. O sorriso de Kleber, de Daniel, na pousada (18 anos, casado, trabalha o dia inteiro e vai à escola à noite, de ônibus, em Maragogi), do homem que nos atende em um restaurante simple, perto da pousada, parece a meus olhos de classe privilegiada sempre um desafio. Uma alegria que resiste ao abandono que a sociedade brasileira dedica aos seus, a eles. Como estarão agora nestes tempos de quarentena e de peste?

 

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A photographia – A imagem é ruim, contraste exagerado entre branco, preto e poucos tons de cinza. Por isso, vê-se mal o rosto de José, embora o terno branco, assim como o vestido de Odette, exploda com sua cor exacerbada. Odette, além do vestido branco, de meias brancas, tem Haydée no colo. Atrás da foto, está escrito: À Dona Micota (mãe de José) / Haydée, com 6 mezes. / A photographia não prestou mas enfim sempre se pode ver a figura principal do trio / Alegrete 25/2/929

 

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Versão de Povina – Nas Memórias, há o relato de uma excursão à Serra da Barriga que vale a pena reproduzir: “A invasão holandesa no Nordeste provocou a revolta dos escravos africanos de Porto Calvo. A rebelião propagou-se de tal maneira, com a adesão de numerosos quilombos, que, com o passar do tempo, se tornou uma força poderosa. A ação desses negros era, entretanto, depredadora. Atingiu tais excessos criminosos que as tropas irregulares, chefiadas por capitães-do-mato, foram impotentes para combatê-los. Os escravos foragidos queriam a liberdade. Mas eles eram simples mercadoria humana com preço no mercado. Os brancos não lhe reconheciam nenhum direito. Desde 1630 a insurreição tomou conta da selva nas arremetidas dos míseros africanos que, para sua sobrevivência, saqueavam as lavouras. Meio século de luta inglória. As hordas libertárias espalhavam-se pelo sertão, disseminando o terror, até que, por volta de 1685, refugiaram-se num núcleo poderosamente fortificado, numa montanha que oferecia defesas naturais. Era a Serra da Barriga, próxima da Cerca-Rial-de-Macacos, nome primitivo de União.”

 

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Etimologia – Virus, sumo, suco, humor, vírus cochlearum, baba dos caracóis; semente dos animais, sêmen; essência, aroma, perfume; droga, poção, beberagem, amatorium vírus, filtro, amavios; peçonha, veneno, fel, linguagem virulenta; mau cheiro, exalações pestilentas, fedor, amargor // cada um de um grupo de agentes infecciosos diminuto, caracterizados pela falta de metabolismo independente e pela habilidade de se replicarem somente no interior de células vivas hospedeiras; são compostos por uma bainha protéica que circunda uma molécula de ácido nucléico. Vizinho, no dicionário, de virtus, virtude, e de vis, força, vigor, e de vir, homem, varão. Um pouco afastada está virgo, desconfiada.

 

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A idealização – Vejo os filmes de Cacá Diegues, Ganga Zumba, de 1963, com Antonio Pitanga, música de Moacir Santos e Cartola de ator, e Quilombo, de 1984, com Toni Tornado, Grande Otelo, Antonio Pitanga, Zeze Motta, Vera Fischer, e música de Gilberto Gil (“existiu / um Eldorado negro no Brasil”). Diz Richard Price: “Pergunto se ao invés de interpretar a história de Palmares simplesmente em função de nossas necessidades ideológicas atuais (à la Carlos Diegues, que diz ter feito o filme Ganga Zumba para enfatizar o tema da ‘liberdade’ e Quilombo para enfatizar o da ‘utopia’) (...) não haveria algo a aprender tentando ‘ler Palmares’ da perspectiva ideológica das sociedades quilombolas do Suriname.” A política das versões. Dos pontos de vista. Das fontes. E a música? Colar o trecho sobre a música em Anchieta, de JL (não acho o livro do Pascal Quignard, Ódio à música, que comprei com Joca Wolff em Bogotá faz tempo).

 

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Leituras de quarentena – Das mãos de Ana Paula, me chega Imagens da África, organização e notas de Alberto da Costa e Silva, diplomata, poeta e escritor. O mesmo que faz as notas no livro de Laurentino Gomes, A escravidão que leio à noite pra Anke. De Alberto da Costa e Silva, que viveu muitos anos na África: “concentrados e sós num ar de sumaúmas / mandiocais e córregos íamos na balsa / como quem vai para a horta como quem vai para o coro / meninas que louvassem a alva renda dos den / dezeiros e lavouras cruas de calor” (A travessia do rio Volta in Poesia Reunida).

 

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Excursão à serra da Barriga – “Atingimos o chapadão. A cidade alveja ao longe, com o seu casario branco, que se vê através da transparente e azulada poeira do sol. O Mundaú coleante, justificando o nome de ‘rio torto’, serpenteia entre ribas, lá embaixo, fertilizando o vale. Voltamo-nos para o que foi a sede da República dos Palmares. Nada resta do passado. Nenhum vestígio da prodigiosa fortaleza.” (Povina, Memórias)

 

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Na estrada – Saímos de Maragogi à 1h da manhã, prestando a atenção para a entrada em Japaratingua, deixando o caminho da costa para o do interior que nos levaria ao Aeroporto Zumbi dos Palmares, em Rio Largo. Na estrada vazia, os sapos tomam o lugar dos carros e das pessoas. Não consigo evitar que o carro atropele um ou outro. Nem esquecer os olhos arregalados, cegos pelo farol.

 

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A coisa – Negócio é também algo de que não se sabe ou não se lembra o nome; qualquer coisa – “me passa esse negócio aí”, troço. Uma palavra-ônibus, como diz o dicionário, dessas que admitem muitos sentidos e que carregam tantos quantos consigam entrar.

 

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Dois exercícios gráficos – Da foto de um pôr-de-sol com céu azul, arroseado, púrpura, vou ampliando a figura fugaz de um pássaro em pleno voo até que me sobra uma mancha escura sobre fundo azul e rosa, uma diagonal da esquerda para a direita, e um quase-fole dando corpo à linha. Na gravação de 1º de abril, do suiriri tropical que cantou na frente de casa até chegar o frio, vejo as figuras gordinhas que se formam sobre a reta a cada vez que ele canta sua canção em três pulsos, tã-rã-rã, tãrãrã, tãrãrã (ou sui-ri-ri). A figura se repete durante 22 segundos, a reta e a forma gordinha.

 

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O sobrado da praça da Matriz – “Reuníamo-nos em casa de Jorge, a meio caminho do Mundaú. O velho sobrado, com uma loja de fazendas e armarinho, oito portas (três de frente e cinco de lado), além do puxado que se alongava rua afora, onde ficavam as salas de jantar e de visitas, esta com o único piano da cidade”. (Povina Cavalcanti)

 

 

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Informações de Sérgio Tadeu – João Ferreira do Amaral, avô de Odette, era português, comerciante em Campos dos Goytacazes, possuía vendas no então rio Muriahe, em Campos; dono da Fazenda Santa Fé (teve escravos), tb era dono de vapores que abasteciam comercialmente a região (entravam no rio Paraíba por Macaé). Teria nascido em Baião, no Porto, filho do general Joaquim Ferreira Cabral e Dona Joana Julia Alves. Foi presidente da Beneficência Portuguesa em Campos e teve 14 filhos. Faustino, que casou com a filha desse homem de negócios, Isabel, era Guimarães. Esses os pais de Odette, mãe de Haydée. Foram de Campos para o Rio após a abolição da escravatura. Faustino, pianista, era amigo e parceiro de música de Antonio José Gonçalves Jr, flautista (de quem herdei alguns livros de música), pai de José Gonçalves, sendo a mãe, Maria Candida de Souza Gonçalves, a dona Micota a quem José dedica a foto tirada em Alegrete em fevereiro de 1929.

 

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Arena conta Zumbi – Dá pra ver no iutubi a peça de 1965 de Boal e Guarnieri, com música de Edu Lobo.

 

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Estado de exceção – A peste se instalou. Tudo foi tomado por um ritmo mais lento. O negócio e o ócio.

 

(Actualización mayo-junio 2020/ BazarAmericano)

 




9 de julio 5769 - Mar del Plata - Buenos Aires
ISSN 2314-1646