diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Jornal do Brasil
Fantasmas de Florianópolis ou Viagem a uma cidade morta


Nos últimos dias de junho, houve uma oportunidade rara no Brasil de assistir a um ciclo de cinema dedicado a um diretor argentino, incluindo a presença do próprio. Falo de Edgardo Cozarinsky, cujos principais filmes foram exibidos durante uma semana em Florianópolis, na Universidade Federal de Santa Catarina. O Ciclo Cozarinsky foi promovido paralelamente à série de conferências “O pensamento no século XXI”, em homenagem aos cinqüenta anos da UFSC, idealizada por Raúl Antelo e inaugurada em abril pelo filósofo italiano Emanuelle Coccia. Nos dois últimos dias do ciclo, o cineasta e escritor argentino fez a conferência “Elogio da contaminação” e respondeu a perguntas na sequência da exibição de seu último trabalho, Apuntes para una biografía imaginaria, que estrearia na Argentina poucos dias depois na Fundación Proa, em Buenos Aires. Sua conferência foi antecedida pela que havia apresentado apenas quinze dias antes o escritor Alan Pauls, mais conhecido no Brasil por causa do filme de Héctor Babenco baseado em El pasado e por seus artigos sobre literatura na Folha de São Paulo. Creio que o título da conferência de Cozarinsky tenha sido inspirado na de Pauls, que se chamou “Elogio del acento” (Elogio do sotaque) e girou em torno das canções populares interpretadas em castelhano por estrangeiros, como Roberto Carlos, Nicola di Bari, Ornella Vannoni e Salvatore Adamo, cujo sotaque é tomado como condição de “estrangeiridade” que marca a experiência artística contemporânea.

As exibições dos filmes de Edgardo Cozarinsky foram sucedidas por leituras e debates. A mim coube o comentário do filme Fantasmas de Tánger (1998), delicada sondagem sobre a mítica cidade marroquina que transtorna as fronteiras entre documentário e ficção, algo costumeiro, conforme logo perceberíamos, na filmografia do diretor, que apontou aqui um único mestre para a sua proposta de filmes ensaísticos, o francês Chris Marker. É necessário confessar que, até então, eu apenas tinha lido artigos sobre Cozarinsky, mas jamais tinha assistido a algum de seus muitos filmes (resta agora conhecer sua literatura, seja em espanhol ou português; um de seus livros, Vodú urbano, foi traduzido pela editora paulista Iluminuras, do argentino Samuel León). À exceção de Luis Felipe Soares, organizador do ciclo, e de Raúl Antelo, o mesmo passou com os demais professores-debatedores, que viveram então, durante o mês de junho, um verdadeiro fervor em torno da obra fílmica de Cozarinsky, ao receberem cópias daqueles programados para exibição durante o ciclo.

O crítico de cinema Jean-Claude Bernardet se referiria, provavelmente, a Fantasmas de Tánger como um “documentário de busca”, a exemplo de Santiago, de João Moreira Salles, um ensaio em busca da própria subjetividade através da relação com o outro filmado – nesse caso, um “inferior” na escala social, o mordomo argentino e historiador autodidata da nobreza mundial que acompanhou a vida da família Moreira Salles no Rio de Janeiro durante três décadas – ou de Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, um ensaio em torno da idéia do que significa atuar, representar e, mais especificamente, ser ou não ser atriz (ambos os filmes de 2007). Já o narrador-viajante do filme de Cozarinsky chega à cidade marroquina à procura de “imagens, histórias, fantasmas”. Ele é o condutor de uma sondagem que se transforma em “história coral”, para usar expressão do próprio cineasta, ao contrário do mais recente Ronda nocturna (2004), em que a narrativa é centrada no jovem protagonista à margem e à beira da morte durante uma única noite. Mas Tanger é também “Danger”, conforme um dos testemunhos que ouvimos à revelia do narrador, que de sua parte busca se afastar dos filtros da “cultura”, da “literatura”, embora esteja simultaneamente imerso nelas. Através do coro composto por antigos e novos moradores, escritores e não-escritores, busca chegar às “coisas em si” – o comércio na cidade, por exemplo.

Há, no entanto, um personagem que faz um contraponto ao “buscador branco” que flana pela velha cidade, o qual persegue algo mais visceral, mais ligado às “coisas em si” (e, sem embargo, aparece como o elemento “ficcional” da narrativa): o menino marroquino que escreve em voz alta uma carta à mãe distante e que experimenta o comércio do corpo e da sobrevivência do início ao fim do filme. Por outro lado, nosso guia passa a ser guiado por Larbi Yacoubi, enigmático personagem que, em meio a informações sobre os desvãos da cidade, acusa o europeu de ter lido livros demais; farto de sua onipresença, próxima ou distante, o narrador parece se livrar dele ao jogá-lo de um despenhadeiro à beira-mar. Vemos a cena do crime, mas os fantasmas não morrem jamais.

Inúmeros fantasmas, inúmeras línguas, inúmeros estrangeiros rondam Tanger, um atrativo incontornável para o “ensaísta” Edgardo Cozarinsky, cuja marca registrada parece se encontrar nos efeitos de deslocamento, no nomadismo, na estrangeiridade irredutível, seja no campo do verbal ou do audiovisual. Em texto intitulado “Me gusta descubrir los fantasmas de Buenos Aires”, publicado no jornal Página 12 em 2004, Cozarinsky aborda o tema do seguinte modo: “Creo que estos personajes nómades, que tienen un itinerario, que a veces son como detectives o investigadores, proyectan uma manera mía de ver, de ir de un lado a otro y de mirar. Por más ficción que haya en las cosas, uno las va nutriendo con su sensibilidad. Yo no podría hacer una historia de familia, porque no soy un tipo de familia, no sabría cómo contar una historia así. En cambio, historias de gente sola, errante, que va de un lado a otro, eso sí me sale, respondo muy inmediatamente a eso”. As menções ao roman noir multiplicam-se no filme, que – todo ouvidos e sensações – recolhe a anedota nativa da busca da identidade de uma mulher desaparecida chamada “Tanger”, sedutora de inúmeras pessoas acometidas de “tangieritis” (conforme diz outra personagem-aparição); e que apresenta, logo no início, além de excertos de Casablanca de Michael Curtis e Confidential report de Orson Welles, trechos de um filme noir francês dos anos 50. Fantasmas de Tánger também se articula-contamina com A guerra de um homem só, seu grande filme de 1981 sobre a França sob ocupação nazista a partir dos diários parisienses do escritor Ernst Jünger, por exemplo quando se refere à ocupação alemã de Tanger e destaca a atuação do sultão Mohamed V em defesa dos milhares de judeus que viviam então na cidade.

Pela metade do filme, logo após deixar seu hotel com pressa e sem explicações, o narrador volta a citar o escritor William Burroughs, presença constante em suas indagações e nas lendas da velha cidade. Além de palco de experiências de vida, morte e literatura, Burroughs tinha em Tanger “um antídoto contra os Estados Unidos”, diz o narrador. Prosseguindo sua flânerie, chega até o escritor Paul Bowles em pessoa, que guarda o bom humor, apesar de velhinho e adoentado na cama. Bowles relata como foi um dia “aprisionado” pela cidade onde viveria durante sessenta anos, definida desde sua chegada nos anos trinta como “um asilo de loucos ao ar livre”. Assim, os fantasmas de Tanger pouco a pouco revelam o bas fond de uma cidade vista como um “no man’s land” mais do que desejável, ao qual Roland Barthes dedicaria seus “Incidentes”.

Meninos acrobatas desorganizam a cena do bordel masculino, em que um homem (Burroughs?) faz sexo oral com um rapaz e outro homem (Burroughs!) injeta heroína no próprio braço; meninos vendem cigarros contrabandeados nas ruas, no meio dos carros; músicos cantam e tocam serenos diante do mar; mulheres perguntam se o narrador será um escritor ou um professor que veio atrás dos passos de Burroughs; os mesmos meninos, no final, investem suas economias para entrar na Espanha como clandestinos e são jogados ao mar pelo barqueiro “de bom coração”, em nome de Alá. Referência maior na condução do filme, o menino que “escreve” à mãe desperta à beira da praia e, como voltando à vida, retoma a sua carta. A voz do menino, que promete fazer dinheiro e mandar-lhe muitos vestidos e roupas, pede que reze por ele. Finalmente, ao som de um canto a capela (árabe? judeu?) e ao som do mar, surgem os créditos e conclui-se o convívio de cada espectador com os fantasmas de Tanger.
Concluo, por minha vez, com uma bela questão proposta pelo próprio Cozarinsky, extraída de uma entrevista publicada em 2000: “Nunca supe muy bien qué era el documental o la ficción en estado puro, como etiquetas que se ponen a posteriori. En Francia, por ejemplo son etiquetas que maneja la autoridad del Centro Nacional del Cine porque hay fuentes distintas de subvención para el documental y la ficción. Un proyecto como Tánger lo presentamos a las dos fuentes y con títulos distintos, a ver en cuál salía: salió en el de ficción. Quiero decirte, era exactamente el mismo guión con la primera página cambiada; uno se llamaba Fantasmas de Tánger y el otro Viaje a una ciudad muerta”.

Eis não só o “elogio da contaminação” como sua mise-en-scène.

 

Florianópolis, julho de 2010.

(Actualización agosto-septiembre 2010/ BazarAmericano)




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ISSN 2314-1646