diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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“Sôbolos rios e sôbolos oceanos
onde é que fica a minha ilha?”
Jorge de Lima com filtro
“Observei a menina e enfim
reencontrei minha mãe”
Roland Barthes
Rastros do tempo – Logo eles vão desaparecer. Primeiro, eram os gritos, talvez, melhor, gemidos altos de alguma dor que vinham da casa vizinha, a dor de um velho que, antes, caminhava curvado com a ajuda de uma bengala e, depois, aparecia entre a persiana do escritório em uma cadeira de rodas. Duraram um certo tempo. Depois, conversas sobre a doença também da velha. Ela não geme, canta hinos ao senhor e discute com a filha. Na casa do outro vizinho, são gritos de um menino e dos cachorros pequenos. Os dias passam pontuados pela dor dos outros, a da morte que se avizinha e a da vida que punge.
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Bayer no Brasil – Na edição de 17/18 de outubro de 1932, o Jornal do Commercio anunciava a chegada do vapor alemão “Madrid”, proveniente de Bremen. Entre os passageiros, estava Hans Bayer, correspondente do Wolffs Telegrafisches Büro, mais tarde, a partir de dezembro de 1933, representante do Deutsche Nachrichtenbüro, a agência de notícias do III Reich de Hitler. No dia 10 de janeiro de 1934, Hans Bayer escreve a Jorge de Lima, em português, dizendo ter lido seus livros e prometendo uma visita “nestes próximos dias”. O representante da DNB escreve em português e se desculpa: “Sinto vergonha mandando uma carta no meu horrível e incorretíssimo portuguez ao autor da negra Fulô, mas, infelizmente, não tenho outro meio de exprimir a V.Exa. minha gratidão pelo conhecimento deste magnífico espelho da grande alma brasileira que são as suas obras”. Bayer conheceu Jorge de Lima por intermédio de Ignez Teltscher.
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De Alamiro para Haydée, Aratacolândia, 3/2/1952 – Querida Dedê: /Espero que tenhas recebido o telegrama que te passei, bem assim como aos velhos. A viagem não foi das melhores, pois estou ainda bem resfriado, mas não podia ser tão melhor. / Estou com bastante saudades tuas, porém satisfeito com a base, pois que todas em que estivemos é a melhor e a mais bem aparelhada para nossa vida. / Passamos por Caravelas, Salvador e Recife porém só na última achamos algo que ver, as outras não valem nada. / Chegamos aqui às 6:00 horas da tarde e na frente do outro avião, pois eles almoçaram em Salvador e nós só fizemos um “lunch”. / Encontrei aqui bastante conhecidos que saíram da escola em 1949. Nossos quartos são muito bons; um grande armário embutido para cada um, cama com colchão de molas, e no corredor uma geladeira para água gelada; pegado ao nosso prédio tem outro, que é o cassino, onde tem o rancho, bar, mesas de snooker, ping-pong e outros jogos. / Ontem à noite estive na cidade, fui ao correio passar telegrama, e dei umas voltas; temos ônibus da base para nos levar e trazer à cidade. / Hoje de manhã fui ao clube da Aeronáutica que fica na beira do rio e onde as famílias dos oficiais vão todas para tomar banho. É uma beleza, vais gostar muito, pensei em ti quando lá estive. / Passei a tarde no cassino jogando ping-pong e agora aproveito para te escrever. À noite creio que sairei para dar algumas voltas pela cidade se o tempo permitir. / Aqui tem feito bastante calor, mas é bem diferente daí do Rio. A noite é agradável. / A cidade não é muito grande, porém mais ou menos limpa. Ontem quando vim do correio o ônibus parou de repente numa ladeira e começou a descê-la de marcha-ré, todos ficaram discutindo para saber o que era e no fim é que o “chaufeur” descobriu que havia acabado a gasolina./ Vários colegas foram a uma festa à noite no Aero-clube, e no meio do baile parou a orquestra e entrou uma escola de samba no meio do salão e ficaram lá dançando durante algum tempo. Cenas como estas aqui são bem comuns. /
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Bayer tosquiado – Ainda em janeiro de 1934, no dia 31, aparece em A Nação, um interessante diálogo entre Hans Bayer e o general Góes Monteiro: “Ministério da Guerra. Um homem de terno branco e outro solemne de terno azul escuro. Jaquetão. Trocam-se os apertos de mão emquanto se efetuam as apresentações. // - Góes Monteiro. // - Hans Bayer. // - Da cafiaspirina? // - Não senhor. Jornalista. // - Olá colega, o que quer você de mim. // Uma entrevista. // Góes Monteiro sorri. E o jornalista começa a falar. A fama do general jornalista honorário tinha ultrapassado as fronteiras não somente como estrategista mas também como homem dos records de entrevistas jornalísticas. O sr Hans Bayer explica tudo isso ao general Góes Monteiro, numa língua um pouco atrapalhada. O general quer fazer concorrência ao português do alemão e fala em alemão ainda pior do que o do seu entrevistador. // - Você fez a guerra? Pergunta o general. // - Não senhor, eu era ainda criança. // - De onde você é da Allemanha? // - De Stuttgard. // - Ah! Você é wurtemberguez? Bom soldado. Foi pena. // - Pena de que? // - De você não ter feito a guerra. Teria aprendido muita coisa. // O jornalista começou finalmente a coordenar seus pensamentos para iniciar as perguntas. Mas o general Góes Monteiro não lhe deu tempo: // - Como vai aquilo por lá? // - Muito bem. // Eu queria que você me explicasse nitidamente a diferença que existe entre nacional socialismo e social nacionalismo. // Evidentemente o general estava invertendo os papeis. De entrevistado passava a ser entrevistador. O jornalista allemão, inteligente e arguto, comprehendia a manobra e se preparava para a investida. E foi assim que em vez de responder à pergunta do general Góes Monteiro procurou saber: // Qual é o programa de V.Exa. // - Que programa? Perguntou. Você deveria antes de mais nada contar-me algumas coisas a respeito da Allemanha, disse o general Góes Monteiro. Tenho acompanhado com grande interesse o movimento hitlerista e tudo que se relaciona ao assumpto é muito grato para mim. // Foi então que o jornalista alemão passou a dar com enthusiasmo a sua entrevista, mostrando a diferença entre os vários partidos e referindo-se à obra de reorganização dos nazis. O general ouvia com toda a attenção. E o jornalista falava. Finalmente reviveu no ministro da Guerra o seu espírito de coleguismo e encerrando a audiência, prometeu para o senhor Hans Bayer a entrevista que será concedida amanhã. Hoje o entrevistado era outro. Tinha ido buscar lã e saíra tosqueado.”
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Bim Bom – Em 1948, Joãozinho, o quarto dos sete filhos do comerciante católico Juveniano de Oliveira, cantava com os amigos em Juazeiro tentando imitar a voz de Orlando Silva. Tinha 17 anos, um ano mais moço que Alamiro. Em 49, estava em Salvador e em 50, no Rio.
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De Alamiro para Haydée (cont) – Não tenhas receio pelas pequenas daqui, são todas de cara chata e falam cantando, servem até para espantar urubu à distância. / Amanhã será a nossa apresentação oficial ao comandante da base. Haverá um almoço de confraternização de todos os oficiais aos novos aspirantes. / No começo do nosso curso, teremos uma vida bem dura, porém em Novembro já deveremos ter acabado tudo, e aí tudo será mais fácil. / Que tens feito? Fostes a C. Grande no domingo? Escrevas me dizendo tudo. / Tenho bastante saudades da minha mulherzinha querida a quem muito amo. Espero que muito breve possamos estar juntos novamente, porém desta vez, será para sempre e aí nada mais há de nos separar querida. Hei de te amar tanto como nunca imaginaste. Gostarás bastante daqui pois tudo será fácil para nós. Escreva-me bastante, não deixes de fazê-lo, me contando todas as novidades. Não esqueças de mandar o resultado do requerimento. Espero ansioso. / Lembranças para teus tios, primos etc. um abraço para tua mãe e um milhão de beijos e abraços do teu noivo que nunca te esquecerá. / Miro // Telefone para os velhos que amanhã escreverei para eles. / Muitos beijos para você meu amor
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Hitler e a eugenia – Abaixo da interessante entrevista com Goes Monteiro, o jornal registra o discurso de Hitler e de Göring no Reichstag por ocasião do aniversário de um ano da chegada dos nazistas ao poder. O título: Importante discurso do “Führer” no Reichstag. Entre os assuntos que diziam respeito ao Tratado de Versailles, à proibição do rearmamento, aos propósitos pacíficos da política externa do país e aos cerca de dois milhões e meio que faziam oposição ao nazismo, diz Hitler: “Devemos temer: (...) os elementos inferiores, que o Estado procura esterilizar” para, em seguida, responder aos que lembravam das objeções à esterilização pelos religiosos: “Renunciaremos à esterilização se a igreja assumir a responsabilidade de sustentar os que soffrem doenças mentaes hereditárias”.
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Família e meio – Leio as cartas de meus pais de antes do casamento, 1952, e tento reconhecer nelas o Alamiro que foi meu pai ou talvez, melhor, conhecer um Alamiro jovem, 22 anos, recém-formado, começando a vida em Natal – Aratacolândia, como ele escreve –, bem longe do Rio onde cresceu e de Caxambu, Minas Gerais, onde seu pai tinha um hotel. Não me surpreendem os clichês e o preconceito na apreciação do nordeste, nem a ingênua descrição das “pequenas” que “servem até para espantar urubu à distância” – maneira de acalmar o ciúme de Haydée ou justamente de incitá-lo? –, nem as juras de amor. A carta exala toda a expectativa por uma vida que “começa”: a apresentação na base como aspirante, a vida de quartel que eu iria conhecer também, não no Rio, mas em Campo Grande, Mato Grosso, os oficiais, os soldados, os aviões, tudo aquilo que para mim, adolescente, seria o contra exemplo. Alamiro era o filho mais novo do comerciante do Méier Antonio Santos que chegou a acumular capital a ponto de comprar um hotel em meados dos anos 40 em Caxambu, estação de águas minerais na serra da Mantiqueira, Minas Gerais. De sua mãe, vó Nair, sei pouco. Morreu quando eu era criança. Foi no hotel, Hotel Lopes, que se conheceram, em 1948. Vargas havia sido deposto, um general governava, Dutra, mas Vargas voltaria em 1951.
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Passagem à dança – Lendo a tese sobre o lixo de JL, começo a enxergar versos: catervas adensadas de urubus, um decassílabo heroico, sarjam a limpidez dos ares salsuginosos, um alexandrino. E que versos! Multidões acumuladas de urubus; sarjar = abrir sarjas, escarificar, fazer incisões em; salsugem = lodo em que existem substâncias salinas, ou seja, as legiões volumosas de urubus cortam a limpidez, o brilho (límpido = transparente, diáfano, claro), dos ares lodosos (lodo = depósito terroso com mistura de restos de vegetais e matérias animais que se forma no fundo das águas // (fig) baixeza, aviltamento, ignomínia). Um Jorge de Lima próximo a Augusto dos Anjos e a Euclides da Cunha, ébrio de elefantíase verbal, expressão cunhada por Sérgio Buarque de Holanda em artigo de 10 de dezembro de 1952 para o Diário Carioca sobre Invenção de Orfeu.
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A imagem – É uma foto daquelas colorizadas, vertical, do álbum de 1948-51. Alamiro, 18 anos, e Haydée, 20, de braços dados, estão no centro de uma paisagem de jardim, com cercas de madeira trabalhada, um pequeno lago à esquerda, abaixo, o verde das plantas e uma nesga de céu azul (pintado), no alto à esquerda. É o parque de Caxambu, fevereiro de 1949. Ele, bem mais alto que ela, não foi colorido, permanece com os tons de cinza e branco; ela, tem apenas o detalhe da manga da camisa e do colarinho pintados de azul escuro. Há como que três, quatro planos: primeiro, parte do laguinho, rodeado de um gramado, uma planta (uma bromélia grande?) e a cerca de madeira; há reflexos na água do lago, na parte que aparece invadindo a imagem da esquerda até o centro, e um tom levemente azulado; no segundo estão eles, Alamiro bem virado pra câmera, de pernas levemente abertas, calça cinza, camisa branca, parece mais velho do que em outras fotos do mesmo álbum; Haydée, encostada a ele, quase uma menina, de sandália, pantacourt branca, colete também branco e os detalhes da camisa em azul mais escuro – no tornozelo, vê-se a fita também azul que fecha a sandália. O terceiro plano, atrás do casal de namorados, mostra uma passagem escura ladeada por duas grandes pedras e encimada por uma cerca de madeira trabalhada; no fundo, a mata verde no morro onde, com algum esforço e a ajuda de uma lupa, cintilam mínimas flores vermelhas – duas intrusas e timidamente exibidas, se mostram um pouco menos mínimas entrando na imagem pelo alto, à direita. À esquerda, uma pequena nesga de céu azul pegando o vértice do retângulo, um último plano, uma linha de fuga. Olhando bem a imagem me apareceram as flores que não havia visto antes: em primeiro plano, no centro, a flor amarela; no canto, à esquerda, flores vermelho-alaranjadas; e no segundo plano, ao lado de Alamiro e acima de uma pedra, pequenas flores azuis. O Operator está antes do lago, talvez um pouco mais baixo que os dois.
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Parceria musical – Em 1937, Vicente Celestino gravou Coração materno que seria filme em 1951, dirigido por Gilda Abreu – Haydée não viu, perguntei –, e que Caetano retomaria em 1968, com um arranjo de Rogério Duprat, que me tocou para sempre. Clara era pequena e gostava de ouvir e cantar Porta aberta, Rasguei o teu retrato, Ontem ao luar. Vicente Celestino nasceu em 1894 – quatro anos antes de minha avó Odette – em Santa Tereza, na rua do Paraíso; por perto, pelo Largo das Neves, passávamos, eu e Clara, aos domingos de manhã, sentados no bonde amarelo, lá por 1988. E descíamos na porta de casa, um pouco pra baixo do Largo do Curvelo, não longe de onde morou Manuel Bandeira.
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Miro, carioca, 21 anos, aspirante – Arataca, espécie de armadilha para apanhar animais silvestres, diz o Caldas Aulete, mas também (Bras. Sul) brasileiro do Norte, nortista, cabeça-chata // pequeno, ruim (cavalo) // F. Tupi. Não há nada a ver em Caravelas e Salvador – pior, não valem nada, a Salvador que me encantaria no final dos 70! – pouca coisa em Recife, as “pequenas” tem cara chata e falam cantando. A cidade é mais ou menos limpa. Faz calor, mas é bem diferente aí do Rio. Snooker, ping-pong, lunch e chaufeur. Começo de vida. Em dois anos, nasceria José Luiz, em três, eu, também com nome duplo, já em tempos de Juscelino, presidente bossa nova.
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Bim Bom – Morreu João, 6 de julho, no Rio.
(Actualización septiembre-octubre 2019/ BazarAmericano)