diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Colaboran en este número

Matías Moscardi
/  Osvaldo Aguirre

Carlos Ríos
/  Ana Porrúa

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/  Antonio Carlos Santos

Julio Schvartzman
/  Federico Leguizamón

Javier Eduardo Martínez Ramacciotti
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Julieta Novelli
/  María Eugenia López

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Diseño

Antonio Carlos Santos

Diário de Viagem
Un tradutor no Baixio dos Francos
Frankfurt, outono e inverno 2018 / Ilha de Santa Catarina, verão de 2019

A partir da implantação da empresa

agro-manufatureira do açúcar, na primeira

metade do século XVI, as relações de produção

escravistas foram as dominantes na estrutura

econômica da Formação Social Brasileira.”

Manoel Maurício de Albuquerque

 

iêri iêre / iêri iêre / iêri iêre / iêri iereiê»

Sinhá (Chico e João Bosco)

 

Oba-lá-lá – O cinema fica na Rossmarkt, número 7, do ladinho da Hauptwache, dá pra ver da rua a placa Kino ao lado de Hotel. A porta dá acesso a um pequeno café. Depois do balcão, à direita, uma pequena escada curva conduz à sala de cinema, embaixo. Wo bist du, João Gilberto, de Georges Gachot, atrai uma meia dúzia de pessoas para a sessão de 11h45 em uma sala pequena, 50 lugares, talvez. Chove, a temperatura subiu, quase 10 graus. O filme conta a história de um alemão triste de Berlim que vai ao Rio para encontrar João Gilberto e se mata pouco antes do lançamento do livro – Hobalala Auf der Suche nach João Gilberto, 2012 – que resultou da peregrinação. No filme, um narrador, também alemão, segue os passos de Marc Fischer, conversa com as mesmas pessoas para, no fim, “ouvir” João cantando Oba-lá-lá diante da porta de um quarto do Copacabana Palace. A história de uma obsessão, a de Marc, por um obsessivo, João.

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Espaço vital – É uma cópia xerox que me chegou pelas mãos de um amigo, Diego Cervelin, da segunda edição de Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien, da editora Getúlio Costa, de 1951. Há uma dedicatória de Jorge de Lima “Ao Professor Hans Ludwig Lippmann” e uma data, 13-3-52. Lippmann, nascido em Berlim em 1921 de pais judeus – James e Martha, ambos da Prússia Oriental –, era então professor da Universidade da Guanabara; foi um dos organizadores do curso de Psicologia da PUC do Rio; nos anos 1970, diretor da Faculdade de Educação da Universidade Católica de Petrópolis. Católico e monarquista, Hans casou-se com a cearense Ester Bessa nos anos 60 e teve como padrinho Plinio Correia de Oliveira, intelectual católico fundador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade.

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Adolf Klein – O adjetivo völkisch deriva de Volk, povo, e dá conta de uma determinada coloração da nacionalidade; historicamente está ligado a um movimento, die völkische Bewegung, que vem do final do século XIX até a República de Weimar. Seu fundamento é a raça, Rasse und Raum, raça e espaço, suas convicções antidemocráticas e autoritárias. Precisei correr atrás desse movimento de extrema-direita, que englobava também os nazistas e, por exemplo, o panfletário Ernst Jünger dos anos da República de Weimar, em função da editora Adolf Klein, que funcionou de abril de 1926 até 1945, em Leipzig, e, como pude confirmar, operava no meio “radical-völkisch”. Tinha já no final dos anos 20 como seu principal autor Bernhard Kummer (1897-1962), um dos proponentes do Nordicismo, uma ideologia que afirmava que a grande cultura alemã teria entrado em decadência com a cristianização dos bárbaros germânicos. Kummer aderiu ao partido nazista em 1928 e também era membro das SA (Sturm Abteilung ou Tropas de Assalto). Seu livro Mildgards Untergang, de 1927, é ainda hoje muito lido nos meios neonazistas.

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A maldição de Cam – “As negras aparam a espuma grossa, com as mãos em concha, esmagam-na contra os seios pontudos, transportam-na, com agilidade de símios, para os sovacos, para os flancos; quando a pasta branca do sabão se despenha pelas coxas, as mãos côncavas esperam a fugidia espuma nas pernas, para conduzi-la aos sexos em que a África parece dormir o sono temeroso de Cam.” Como ler este trecho de A mulher obscura, romance de 1939 de Jorge de Lima, trecho que ele reproduz em seus Poemas Negros, de 1947? Cam, filho de Noé, foi amaldiçoado por ter visto o pai nu. A história foi usada para justificar o racismo e a escravidão dos africanos, descendentes de Cam que, significaria quente, ou queimado. Alguns arriscam até dizer que para ter sido tão amaldiçoado pelo pai, Cam deve ter feito algo mais sério como, por exemplo, abusar do pai que estava dormindo depois de um porre de vinho.

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Biblioteca Nacional Alemã – Finalmente, em dezembro consigo localizar a primeira edição de Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien na Deutsche Nationalbibliothek de Leipzig. Pelo computador, peço o livro para lê-lo em Frankfurt (a Biblioteca tem duas sedes), na esquina da rua onde morei em 2015, Nordend. Pude então, para minha surpresa, fazer uma cópia dessa edição, uma tiragem datada de 1935, estranhamente sem bibliografia. Passo o mês comparando as duas edições (a segunda é de 1951, pela editora Getúlio Costa, também em alemão) e me virando pra ler em gótico a edição de Adolf Klein.

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Carta de José, meu avô, a seu irmão, Mário – Cachamby, 23 de janeiro de 1919 / Caro irmão / Recebi ante-hontem a tua carta de 16. O que ella encerra entristeceu-me profundamente; disseste que por tua parte não me aconselharias a estudar medicina, porquanto para ser médico era necessário que eu me aplicasse ao estudo, sem o que jamais alcançaria o meu fito. Porque duvidaste de mim? Acaso julgas-me incapaz de realizar o meu intento? Pois bem se assim for, mostrar-te-hei para quanto sirvo, hei de ser médico e sel-ohei. Em 1924, quando me abraçares, sentir-te-has orgulhoso, pois abraçaras um verdadeiro colega. Como vai o Walter? E o Nelson? Sei que vens em Fevereiro, e deixarás aqui o Walter; o Nelson vai ficar muito triste. Enquanto não chega o anno de 1924 peço-te que aceites um abraço de irmão. / José

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Rassenbildung – Há poucas alterações substanciais entre a edição de 1934 e a de 1951 de Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien (Formação e política racial no Brasil). Do oitavo capítulo, intitulado Brasil – um “enorme estado negro”, Jorge de Lima alterou a frase (do 23º parágrafo) “nosso tipo humano resultou do cruzamento de arianos com duas raças horríveis (zwei hässlichen Rassen)”, para “nosso tipo humano resultou do cruzamento de brancos com duas raças de cor”.

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História de família – Minha irmã salvou da destruição as cartas que Haydée, num momento de insensatez, pediu que ela destruísse. Entre elas, duas cartas de meu avô José, de 1918 e 1919, e várias de meu pai para ela e dela para meu pai, quando estavam separados, ele em Caxambu, onde meu avô Antonio Santos tinha um hotel (o Hotel Lopes), ela no Rio, e, depois, ele em Natal e ela no Rio, em 1952, pouco antes de se casarem em maio. Passo as tardes de calor na Ilha emocionado com as trocas de carinhos e promessas, e rindo quando ele se desculpa pelo português mal escrito (nem é verdade, se pensarmos em como os alunos das universidades escrevem hoje) ou quando a chama de “minha mulherzinha querida”.

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Todos cantam sua terra – Um dos Dois Ensaios que Jorge de Lima escreveu em 1927 para o concurso de Literatura Brasileira e Línguas Latinas do Ginásio do Estado de Alagoas (o primeiro era sobre Proust, autor ainda pouco conhecido na época no Brasil), deveria ser uma leitura de Macunaíma, de Mário de Andrade, mas vai além disso. Lá pelo meio, depois de passar por toda literatura brasileira, o autor de Essa Negra Fulô, me sai com essa: “Ora veja como um povo amassado de três barros ruins ainda não se esmigalhou”. No poema Zumbi, de 1921, diz: “Em meu torrão natal – Imperatriz – / nas serras da Barriga e da Juçara, / um homem negro, muito negro, quis / mostrar ao mundo que tinha alma clara”. Os exemplos são muitos e ajudam a entender o estranho livro Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien e nosso racismo estrutural, essa coisa negada, reprimida, que retorna como o espectro do pai de Hamlet. Enter the Ghost.

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Telegrama (cabo submarino The Western Telegragh Company Limited) – (para) Haydee Gonçalves Rua Pires de Almeida 76 apto 301 Laranjeiras Rio / Espere pessoalmente encomenda urgente avião extra Loide sexta 2 horas / Alamiro / 21 de fevereiro de 1952

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De volta à piscina – Volto a nadar depois de quase 15 anos, no mesmo lugar, mas agora a água não tem mais cloro e sim sal. As primeiras braçadas me trazem de volta a sensação gostosa no corpo, as horas em que o corpo andava sozinho enquanto a cabeça trabalhava as leituras, os textos a escrever. Devagar, depois de um ano tão ruim (a operação, a morte de Gerda e de André, a vitória do obscurantismo tacanho e de má-fé), volto a um cuidado de mim, prazeroso e necessário para quem já passa dos 60.

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Kehinde brasileira do Daomé – Leio fascinado Defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, comendo diariamente as quase mil páginas que contam a história dessa menina capturada aos 7 anos no Reino do Daomé, em Ajudá (ou Ouidá), em 1810, que chegou ao Brasil escravizada, se libertou, morou em Salvador e no Rio até voltar à África, 30 anos depois. Aquela que seria a mãe do poeta romântico abolicionista Luiz Gama. Por que as escolas não me ensinaram as histórias, as relações, do Brasil com a África? Por que não estudamos a revolta dos malês na Escola Pública Henrique Dodsworth nos anos 60? A pergunta é tola, retórica, mas conta como fui criado, em um bairro de classe média do Rio que fazia fronteira com a favela (Praia do Pinto), esses dois mundos constituintes da cidade de São Sebastião (a favela foi queimada, o bairro aburguesou-se). A escola ensinava a história dos brancos. A escravidão, que enriqueceu a Europa e os brancos que faziam o tráfico, alimentou o Esclarecimento, a Revolução Industrial, a urbanização, a modernidade europeia. Ao que parece, as ideias não estavam fora do lugar apenas aqui no Brasil, como bem nos mostra Susan Buck-Morss em Hegel e Haiti.

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Livro do Bebê – É uma edição de 1927, da Livraria Globo, Porto Alegre, de Mansueto Bernardi, e tem como epígrafe Mens sana in corpore sano, de Juvenal. A dedicatória: A minha netinha Haydée, A vovó dindinha oferece este livro onde encontrarás a narração de tua infância / Vovó / Sinhazinha / 25 de agosto de 1928. Na entrada O Banho do Bebê, lê-se: Haydée nasceu em estado de morte aparente, tendo sido reanimada logo após pelo Dr Celestino Prunes. Ao nascimento de Haydée estavam presentes os Drs Fonseca Junior (parteiro), Celestino Prunes e José Gonçalves, médicos assistentes, as Sras Izabel Eugenia do Amaral Guimarães, Esther Linares e Leda Baptista Teixeira, que se prestaram a servir de auxiliares. O primeiro sorriso: Ao amanhecer do dia 19 de setembro, depois de terminar a sua primeira refeição, quando recebia as carícias de sua Mãezinha, Haydée sorriu pela primeira vez como se compreendesse quem a acariciava.

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Jorge de Lima – vos ofereço maconha de pito, quitunde, quibembe, quingombô

 

(Actualización marzo-abril 2019/ BazarAmericano)




9 de julio 5769 - Mar del Plata - Buenos Aires
ISSN 2314-1646