diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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No soy muy lector, soy más bien un mirador. Pero leo leo leo y sigo leyendo.
Efeitos de vivência e convivência em Valparaíso, estas frases tolas me ocorreram num voo de volta do Chile ao Brasil, após desatar um bolinho de pequenos livros seguros com um elástico de borracha verde e um papelzinho que dizia: Joca (como quem diz “joga”) a caneta vermelha. Regalo argentino, o bolinho continha nove livros da Oficina Perambulante. // A escrita vacila por causa do balanço do avião (acende-se o sinal de “abrochar cinturones”).
Nas outras ocasiões que esses livretos com capas de papelão reciclado, sem títulos ou autoria a não ser a do produto que vendia (gomitas, bombones de licor, dosi-3, chocobar de arroz...) chegaram às minhas mãos, misturei-os entre si e formei uma biblioteca em miniatura a qual confesso que pouco consultei. // A leitura vacila, a escrita não, agora não.
O fato é que o tato e a borrachinha, e talvez meu nome, transformaram aquele bolinho num volume só, volume ao qual dedicarei uma resenha por vir, ainda que nem todos livrinhos – poucos, nem metade – levem a assinatura de Carlos Ríos, aquele que no entanto os constrói todos, um a um, um a um, um a um... // A escrita vacila, a leitura não: meu antídoto à turbulência sempre foi a leitura como miragem.
Saquei a borrachinha tirando o primeiro livreto, primeiro de uma ordem da qual nem o acaso pode se responsabilizar. Assim, vou resenhando conforme o bolinho já se encontrava na hora da remessa e da recepção, com a promessa de manter essa ordem daqui em diante (com o risco sempre presente da fatal mistura, uma vez que não há nenhum tipo de identificação, com exceção daqueles carimbos, nas capinhas ora foscas ora muito coloridas dos pequenos livros).
Assim, vamos à lista: Un romance de Carlos Ríos; Shangai, 1947 de Federico Schiff; um livreto com recortes de reproduções de James Ensor e capa com dois carimbos pretos: um rosto com aros nas orelhas e o nome Carlos Ríos; um livreto com textos e ilustrações recortadas (agora sem cores) de Quentin Metsys e Pedro Pablo Rubens com a mesma capa do anterior; InDICAciones DE CArácTER de Erik Satie; Adagia de Wallace Stevens; Dos falsas yararás de Ríos (com a mesma capa com carimbos, fundo cinzento); Deus ex machina de Carlos também; e Antepecho de María Eugenia López. // Ufa, já tenho a lista, basta não perder este caderno, fabricado a mão em Valparaíso, à beira do oceano Pacífico, ainda que o balanço tenha aumentado (a escrita vai parar por um momento, a miragem não). // Ufa, o avião já vai pousar. Então, e só então, poderei retomar esta resenha.
***
Un romance de Ríos é uma manígua, digo, parece com uma,[i] aqui mais breve: num lugar chamado Cracolândia depois do fim do Estado, se narra, ou melhor, se “age” uma narrativa de violência, em que o ataque de um homem (“se tiró como un futebolista”, “de carrinho”) em direção a uma mulher é inócuo para atingi-la na parada de ônibus. Ela permanece impávida, pairando acima do arroubo tresloucado do machirulo furioso e sem um braço com quem manteve uma relação amorosa na cabana dele nesse lugar. Tudo isso é filmado por câmaras de segurança e na sequência, por suposto, disparado via redes sociais. Un romance é um conto em catorze fragmentos reunindo crueldade e sarcasmo, prosa e poesia impávidas e ao mesmo tempo eloquentes em seu modo de desdizer-desfazer-desdobrar o relato. Esse modo inclui advertir o leitor, por exemplo, no capítulo 8, de que: “El capítulo 5 se titula la acción” – sendo que no capítulo 5 se considera uma diferença importante entre emoção e felicidade; e se informa que a lava-roupas regalada à esposa e vendida após a separação serviria para investir na “tierra del crack”. Inclui advertir também, entre parênteses, que sua cidadela se chama Cracolândia “por default literário”. Poderia ser São José dos Ausentes.
Shangai, 1947 de Schiff é a joia da coleção: catorze desenhos com tipos, situações e circunstâncias em movimento de traços chineses, como o título da série. São traços chineses muito sutis, traços finos em preto, evocados, na primeira ilustração, pela barriga do homem de barba e olhos grande-abertos (em contraste com o padrão dos demais). O homem nu está sentado e lê uma tábua de letras recortada na vertical como um acróstico em língua desconhecida, ainda que se reconheça ali o espanhol. Já a moça de costas com a criança mostra dois viventes que caminham; também lhes dá apoio uma reta vertical à direita do quadro. O homem com chapéu chinês e cesto: não se pode ver suas pernas; o homem voa ao lado de uma haste às suas costas, à esquerda. Depois vem o Buda que fuma e telefona; está sentado e apoiado sobre uma mesa onde se encontra o velho aparelho; sai uma fumaça fina de seu charuto igualmente fino; à esquerda se vê outro acróstico espanhol e à direita uma haste claro-escura; acróstico non-sense com três versos à esquerda, o carregador, agora de corpo inteiro, suporta uma vara em cujas pontas são levadas malas pesadas (só podem estar pesadas); há um chão oblíquo em que o tipo com chapéu e roupas simples busca se sustentar. No quadro seguinte, mais força: dois homens carregam outro numa poltrona voadora, numa hamaca ou liteira; a cena evoca a escravidão mas também pode se tratar de um ancião ou um enfermo, ou os filhos que levam o pai rumo à terceira margem do rio. Fios pretos, hastes claro-escuras equilibram o prato do dia, que o chinês redondo conduz à mesa, fumegante; a travessa é grande e quente e suas vestes e seu avental apresentam-se adequados para a ocasião. Já na página central vemos a paisagem do rio em Shangai, um grande barco à vela em primeiro plano e a cidade ao fundo; duas linhas de texto definem precariamente a cidade: “Ghai es una ciudad de muy cerca de / tro millones de habitantes. Se alza so- /”... Outro acróstico non-sense e uma camponesa varrendo o vento com seu galho de folhas ou ramo de flores, conforme o ponto de vista, braço direito alçado com o galho na mão, braço esquerdo dobrado junto ao corpo segurando um cesto: movimento. No desenho o Buda se refestela, sorridente, diante de um lauto jantar e faz um brinde com a mão direita, corpo e braços sobre a mesa posta. Página virada e duas ladies conversam em pé, lado a lado, com seus longos vestidos (um florido, outro pontilhado); os braços de ambas dizem o que não se ouve. E, na página da direita, outro acróstico recortado ao lado de uma cena de açougue, o açougueiro arredondado com o braço direito alçado e a outra mão sobre sua mesa de trabalho, com panelas e instrumentos; sobre seu braço três frangos escalpelados pendem de um cabo horizontal. Corpos em deslocamento, ouvidos por voz inaudível, vistos por gesto e movimento invisíveis. O perfil da avó fecha a série, agulhas sustentando o seu coque, os cabelos leves e o colarinho traçados de modo suave, como toda a série de magníficos desenhos de Federico Schiff.
O terceiro livrinho, dedicado a Ensor, enfrenta o leitor desde a primeira página com um vermelhaço, atravessado por cremes e verdes igualmente intensos. É uma colagem de recortes de Ensor com as únicas inscrições na capa de carimbos e os créditos de James Ensor da própria publicação recortada e reproduzida no livrinho. Assim: 4/ JAMES ENSOR // “Música en la calle de Flandes” // 24 x 19cm... E assim por diante, mais três máscaras “Wouse”. Não há nada aí a não ser cores vívidas e pincelaços ásperos, algumas máscaras mortuárias, alguma mão segurando um pano, uma vela, uma dor. No final tudo volta para o início – vermelhaço atravessado por cremes e verdes intensos.
No livrinho com Metsys e Rubens vemos sinopses de quadros em preto e branco com fundo amarelo claro. Ainda que Pedro Pablo Rubens reine soberano, há espaço para David, além de outros poucos. Entre estes outros, Joachim Patini(r), “Paisaje con la huida a Egipto” // 17 x 21 cm... “Primer paisagista entre los primitivos flamencos...”...
As Indicações de Caráter, quinto livreto, foram extraídas dos Cadernos de um mamífero de Erik Satie e são de ordem poético-musical: foram introduzidas pelo poeta-compositor em certas partituras buscando uma “certa atmosfera geral”. Na forma como são apresentadas no livrinho, em ordem alfabética, se transformam num poema largo, assim: “A flote. A la napolitana. Abra la cabeza. Acariciador. Aconséjese atentamente. Acribillado”... até ... “Verdaderamente. Virtuoso. Viscoso. Visible por un instante”. Seria preciso lê-lo para escutá-lo: enumeração, adição, subtração, imprecação, sugestão, sempre humoradamente alfabéticas. Satírico Satie: a Oficina Perambulante funciona com princípios similares.
Sexto: poesia, roupas de seda, imagens fortuitas, poesia e matéria poética, experiência antes que realidade, poesia experimental em ato, percepções antes que concepções, sentimento do real, “nem todos os dias o mundo se dispõe num poema”, “a poesia deve ser irracional”, “um poema é um meteoro”, tudo e nada é matéria de poesia, que não é pessoal, “o poema da ideia dentro do poema das palavras”, o corpo como o grande poema: Wallace Stevens, provérbios em Adagia, insinuando “che cos’è la poesia”. Nemesio Gamboa fez a seleção e Eme-c traduziu para as edições Península.
“Hoy miércoles me enteré / de la muerte de mi poeta.”: começo de Dos falsas yararás [Noticia de eso que llaman un campo de tensión]. Duas falsas jararacas. Notícia disso que chamam um campo de tensão. Jararaca, além da cobra, recobre um amplo arco semântico no Brasil (não sei na Argentina, mas pelo que diz o poema não há o que perguntar): uma jararaca é uma pessoa que é uma víbora, uma cobra, uma perigosa, uma venenosa pessoa cheia de malícia e maldade; as quatro sílabas como que marcam ritualmente isso; ainda que o nome da cobra em castelhano sudaca soe muito mais lindo. Trata-se da morte do poeta-yarará, deste poeta num sábado, e do poeta todos os dias: trata-se de falar da morte a partir da poesia e do poeta – que “não tem anedota”, nem que a sociedade argentina de escritores [SADE, pervertina sigla] queira. Poema em quinze partes breves, nas partes IV e V surgem duas hipóteses para a morte do poeta vizinho de província a quem “eu” nunca tinha visto: atropelamento por um automóvel e uma nuvem de cristais num domingo de nuvens negras; ou picado por um bicho não identificado (a primeira hipótese me lembrou o acidente que levou Roland Barthes à morte). Encontros e desencontros com o poeta morto, chegamos à oitava parte em que aparece, de repente, o nome de Aguinis, Marcos Aguinis, o escritor cordobês que se consagrou com romanções e se tornou um best-seller. Haverá outro Aguinis? Taxativa e definitiva, a estrofe é de quatro versos: VIII “No podía creer que Aguinis / me había firmado un libro / en la feria. No lo veía bien. / Creyó que no lo merecía.” IX “A mi nunca me interesó / lo que escribía ni lo que / pensaba sobre los libros / o sobre teoria literaria.” Na décima parte anuncia o “eu” de Duas falsas jararacas que entrou em acordo com Aguinis, falsas jararacas: “Nos entendíamos en nuestro / rechazo hecho de simples cosas.” Trata-se da luta das duas cobras que, não satisfeitas, se atacam: XI “[Dos falsas yararás / leyéndose con furia / y en secreto. No sin / lentes. Atacándose.]”: Duas falsas jararacas / se lendo com fúria / e em segredo. Não sem / óculos. Atacando-se – diz o poema numa das vezes em que treme como só a terra pode tremer. Cruzam-se os poetas de bairro em política sindical e nos pronomes e firmas: XI “Escribió / sin saber / que un día / yo pondría / esos versos / en mi libro / sin decir / quien es.” E convergem para a orgia batailliana da última estrofe que reza (com aspas no original): “‘Estoy hecho / para la pérdida / en un tiempo / en que habría / que hacerlo / todo al revés.’” Mais que nunca, de fato, há que se fazer tudo ao revés.
O penúltimo experimento desta antologia do além do acaso apresenta, com sua capa colorida de gomitas y rueditas, catorze fragmentos intitulados Deus ex machina e assinados por Ríos. Deus fala por uma máquina, começa o poema, que conversa com a língua grega: “decís apò mechanés / theós”... O ouriço derridiano trabalha a todo vapor nestes escritos que também prestam tributo ao concretismo, pois, feito poeta verbivocovisual, “deus fala por uma máquina de ritmos” na página em branco em miniatura. Mas o que talvez possa um pouco traduzir o poema para nós seria o sétimo fragmento, que leio em brasileiro: “(apò mechanés theós) / é como se cê tivesse um poema / na cabeça e tudo o que aí / se vá recitando começa a / ocorrer, de repente tudo isso / passa aí atrás da tua cabeça / e cê diz ‘oh, a máquina de / deus tá ligada, haverá / mundo e destruição hoje / e todos os dias parecidos / com o de hoje, haverá cerimônia / e leitura de poemas, haverá / que descer da árvores para des- / cansar, a quem lhe calhe de / cozinhar só depois de ben- / zer os alimentos colhidos”. Uma colheita de verdura linguística orgânica porque aplicada a golpes de cotidiano, do cotidiano mais comezinho e detalhista, que é marca registrada dos experimentos poético-destrutivos de Ríos no puro dispêndio que os caracteriza e com os quais se constrói.
Texto-enigma, Antepecho de María Eugenia López fecha o volume mais-que-imaginário, incluindo a “obra gráfica” de Diego Molina: são desenhos tipo bico de pena tão bárbaros quanto o próprio Anteparo de María Eugenia, com o qual estamos de volta à Cracolândia. Uma outra Cracolândia, com uma violência similar nos lares através das televisões e das telas em geral: choro e sangue nos discos e nas autopistas. “Colgados”, “Ellos”, “Leones” são os três capítulos de Antepecho, em cujos anteparos não resta pedra sobre pedra, violência seca e extática, feito o efeito de alguma boa droga: suspensos, eles, elas, leões... Sexo e canibalismo são os ingredientes, leoninos ingredientes de María Eugenia, que aponta no entanto – como Un romance – ao político mais contemporâneo através da pergunta que fecha o texto: “¿Cómo llegamos a bombardear Siria?”. Conclui-se, no estado de exceção, que o gás e o forno são fatais aprendizados da vida bruta. Na capa do livrinho, num contraste tão violento quanto ele próprio, a graça do bombom de licor não cristalizado em cores azuis da marca Licorfort, orgulhosamente argentina e com a promessa de conter álcool. Que se cumpre neste volume inventado da Oficina Perambulante. Porque ao mesmo tempo acalma e enerva. Porque refresca e ao mesmo tempo queima.
[i] Na primeira novela de Carlos Ríos, Manigua (Buenos Aires: Entropia, 2009), uma estória-instalação narra a viagem em busca de uma vaca a ser sacrificada pelo pai do protagonista em São José dos Ausentes, em algum rincão africano (!), após o apocalipse: bandos se movem pela terra arrasada e, nômades, habitam cidadelas de papelão; esta viagem é, por sua vez, narrada ao irmão do protagonista que agoniza num campo de refugiados. Manigua – que significa, entre outras coisas, um feixe ou um maço de folhas ou coisas quaisquer –, foi publicada no Brasil pela editora Cultura e Barbárie em 2016 em tradução a quatro mãos de Antonio Carlos Santos e Jorge Wolff.
(Actualización noviembre 2018 - febrero 2019/ BazarAmericano)