diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Diário de Viagem
Um tradutor no Baixio dos Francos
Campeche, outono 2018 (ainda na Ilha de Santa Catarina): Os pássaros, a dor

Vou voltar / sei que ainda
vou voltar / para o meu lugar

foi lá / e é ainda lá
que eu hei de ouvir /
cantar, uma sabiá,

Tom Jobim e Chico Buarque

 

A mulher abre a porta, e ele reconhece
que nada é grande demais para seu domínio

Jelinek

 

Endívias violáceas

Anatol com Jünger

 

Charadriiformes – Andava pela praia com a Clara e mostrei a ela o novo amiguinho que se tornava visível pra mim de pouco tempo pra cá. Não sabia seu nome: era um pássaro pequeno, de pernas longas e vermelhas, preto e branco, com um bico longo e reto. Passava naquela hora por nós um pescador e eu perguntei pelo nome do pássaro: cor-cor, disse. E eu: hã? Ele: cor-cor. E novamente não entendi (escrevo cor-cor porque foi aproximadamente o que ouvi, ou achei que ouvi). Desisti e fiquei de procurar depois. Comentei com um aluno que alguns minutos depois me trouxe o nome: Pernilongo-de-costas-brancas ou himantopus melanurus, que significa pássaro pernalta com cauda preta. Da classe das aves, ordem charadriiformes, subordem charadrii.

 

*

Imagem prefiguradora – Desde que vi Crash, de Paul Haggis (2005), não me sai da cabeça a cena do policial branco – o mesmo que humilha o casal negro em uma blitz em Los Angeles e depois salva a mulher que humilhou em um acidente – ao lado do pai que, sentado na privada, chora por não conseguir fazer xixi. A cena voltou forte neste ciclo infernal do pós-operatório quando bexiga e intestino ficaram paralisados pela anestesia geral.

 

*

Com a forma da tarambola – Dias depois, andando novamente na praia bem cedo, observava os pássaros que sempre estão por ali: gaivota, quero-quero, etc. E então o vejo e faço a distinção: sim, há o pernilongo-de-costas-brancas (embora suas costas sejam sempre pretas), mas há um outro bem parecido para meus olhos ainda amadores que tem o bico e os olhos escarlates. É um pouquinho maior que o pernilongo, que também é conhecido como perna-de-pau e maçaricão. Procurei na internet e lá estava ele: Piru-piru ou haematopus palliatus ou baiacu, batuíra-do-mar-grosso, beijaqui, ostraceiro e cã-cã-da-praia. Só então entendi a confusão e o nome que o pescador manezinho me falou: cã-cã. Ambos são da ordem dos charadriiformes e da subordem charadrii. A tarambola, que cedeu seu nome em grego χαραδριος, para nomear a ordem e a subordem dessas aves, se chama também baituruçu de axila preta, pluvialis squatarola, e só entra nessa história porque fui ao dicionário de grego que ainda remetia χαραδριος a χαραδρα, fenda, barranco, desfiladeiro / leito de rio / torrente, canal.

 

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Infância – Eu era pequeno e na frente do prédio de número 141 da Afrânio de Melo Franco havia um pequeno jardim. Com uma caixa de fósforos vazia, pegávamos insetos para observar.

 

*

Um encontro inesperado – Uma hérnia inguinal. Operável, disse a clínica geral após me examinar. Consulte um cirurgião. Feitos os contatos, marcada a operação, precedida por vários exames, vi-me em um táxi a caminho do hospital, do Imperial Hospital de Caridade. Sempre tive uma grande aversão a tudo o que se refere à medicina, a hospitais, aos remédios, embora na minha biografia haja uma relação especial com um avô que não conheci, pai de minha mãe, que era médico. Meu estado de espírito não era bom, uma expectativa sombria. A entrada no hospital, a burocracia da internação, o quarto, a espera. Finalmente, levado de maca para a sala de pré-anestesia onde ainda esperei uns 40 minutos ouvindo dois médicos conversarem, falando mal de uma terceira médica. Sala de operação e apaguei. Acordei ouvindo alguém gemer e reclamar de dor. De volta ao quarto, começaram as dificuldades. Paralisado pela anestesia, não conseguia fazer xixi. Terça-feira.

 

*

Passaredo – Bico calado / tome cuidado / que o homem vem aí, diz a canção de Francis Hime e Chico Buarque, composta em 1975, quando estava difícil voar (Basta lembrar a Operação Condor, tempos de Geisel que, em alemão, quer dizer refém). Passarim quis pousar não deu voou, do Tom, apesar de ser de 1984, início da redemocratização, parece querer dar conta de outro momento difícil: nossa triste cena contemporânea. “Por que que eu também não fui feliz?”

 

*

Coral – Escorre do ânus divino / a neve branca que cobre a terra.
            A neve que cobre a terra branca / escorre divina do ânus.
            Escorre da neve branca / o ânus divino que cobre a terra.
            A terra escorre branca do ânus / e cobre a neve divina.
            Escorre divino e branco / o ânus da terra que cobre a neve.
            Cobre a terra divina e branca / a neve que escorre do ânus.
            Divino ânus cobre branco a terra que escorre da neve
            Neve ânus terra divinos escorrem brancos e cobrem
            Escorrem e cobrem divinos os ânus brancos como a neve da terra
            A terra cobre divina o branco ânus que escorre da neve
            A neve do ânus cobre a terra divina e escorre branca

 

*

O tiro partiu mas não pegou – Um vídeo de um programa da TV Manchete de 1984, de uma série dirigida por Nelson Pereira dos Santos, A música segundo Tom Jobim, mostra o maestro ao piano em sua casa, Dori Caymmi à sua direita, sentado em uma cadeira com o violão, e em pé, debruçado sobre a cauda do piano, Danilo Caymmi. Tom diz que vai tocar uma música nova, que ainda não está pronta. Eram os dias das marchas pelas diretas-já; nos palanques e nas passeatas Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Lula, Fernando Henrique. Tom mostra aos amigos Passarim, que sairia depois no LP do mesmo nome em 1987. Clara nascia nesse ano, em maio, quando parecia que o país começava uma fase nova. Como diz a canção, o tiro feriu mas não matou: “Passarim quis pousar não deu voou”. E o maestro Brasileiro de Almeida ainda esticava o voooooou.

 

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Funções vitais – Quinta-feira. Após uma volta pra casa difícil em um táxi, a constatação de que o quadro não evoluía bem. O médico me pede pra voltar ao hospital, à emergência. Não consigo fazer xixi suficiente, a barriga tá inchada. De novo, a burocracia. Senha, espera, ficha de atendimento, espera, triagem com uma enfermeira, espera. Finalmente, uma médica jovem me atende e no meio do atendimento chega o cirurgião que me operou. A sonda entra pela minha uretra, em uma sala onde alguém gemia. Antes, conversaram se seria de 18, 16 ou 14, se bem me lembro dos números, o tamanho. Urro de dor. A 18 não vai até o fim. Muda-se para uma menor. Não sinto mais nada. Volto de táxi com Ana Paula. O sol se põe na ilha. Joca Wolff me acolhe, me consola. Conversamos. Preciso dormir.

 

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O fragmento e o ouriço – Diz Schlegel que o fragmento, tal como uma pequena obra de arte, tem de ser separado, isolado do mundo que o rodeia e ser perfeito em si mesmo como um ouriço.

 

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Cuidado com ela – Em 1989, Elfriede Jelinek entrevista Ernst Jünger, que já ia pelos 94 anos. Na abertura, ela conta que após este contato ficaram amigos, trocavam cartas, conversavam ao telefone. Filha de um judeu tcheco e de uma austríaca rica, Elfriede nasceu em 20 de outubro de 1946, ganhou o prêmio Nobel em 2004 e é uma figura polêmica (como gostam de dizer os jornalistas) em seu país, formando com a melhor linhagem do passado como Franz Kafka, Joseph Roth, Hermann Broch, Robert Musil e Thomas Bernhardt, com quem se assemelha na crítica feroz ao estilo de vida de seus compatriotas. Entrou no Partido Comunista em 1974, deixando-o em 1991. A entrevista foi dada, conta Jünger, apenas porque a mulher de Dürrenmatt, Charlotte Kerr, disse ao autor de Caçadas sutis que ele deveria se cuidar diante dela, um gefährlicher Mensch (um cara perigoso). Os austríacos tentaram calar sua pena ferina, depois de Die Kinder der Toten (Os filhos dos mortos), de 1995. A Alemanha descobre seu talento e lhe acolhe.

 

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Funções vitais – Meta: fazer meu intestino e minha bexiga voltarem a funcionar. De ameba a samambaia, depois, rato e, espero, vou voltar.

 

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Desejo – Autora de A pianista, levada às telas pelo não menos crítico Michael Hanecke, Jelinek é dona de uma prosa terrível, super elaborada, cáustica, que corrói o conforto pequeno burguês como um ácido. Leio na tradução de Marcelo Rondinelli, Desejo (Lust), de 1989, exatamente da época da entrevista com Jünger. “A família, esse abutre, cria-se a si mesma como animal doméstico”. A relação reificada do diretor de uma fábrica de papel com sua mulher e filho, em uma pequena cidade da Áustria, vai se desenrolando diante de nós com a crueldade e a secura lógica de um filme de Hanecke: “O homem cria, arrebatado pelo vento, a mulher. Puxa-lhe a cabeça e escancara-lhe as pernas como se fossem ossos murchos. Ele vê as falhas tectônicas de Deus nas coxas da mulher, não se importa com elas, seus montes emblemáticos locais ele escala por senda segura e costumeira, conhece cada ponto onde mete o pé”.

 

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Charadrios – Estão na Bíblia, tanto em Levítico II, quanto em Deuteronômio 14, as regras referentes ao puro e ao impuro e entre as aves impuras, que não devem ser comidas pelos hebreus, está o charadrios, ave aquática de hábitos noturnos mencionada por Aristóteles e Aristófanes. Para Aristóteles, sua plumagem seria tão desagradável quanto sua voz, já a medicina antiga via nessas aves poderes ocultos de cura: bastava olhar para uma delas para se ver livre da icterícia. Meu amigo maçarico do banhado, o socó, com seu bico de cimitarra, também está no index prohibitorum.

 

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Do ânus divino – Há alguma coisa de podre, de derradeiro e excrementício, neste reino do passado e da folhinha do calendário, a Áustria (a Oirropa). De seu conforto, da neve que sai do ânus divino, sente-se o odor azedo do consumo pequeno burguês, da vida reificada, da submissão, do domínio do macho branco cristão, aquele que sempre traz consigo a morte como estandarte. Escatoirropa.

 

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A bordo, 25/10/1936 – No horizonte, um pássaro escuro faz um círculo com uma oscilação pequena, na forma de uma foice. Às vezes, mergulha nos vales de nuvens, navegando no arco, e tocando nele por vezes com a ponta de sua asa. Que pensamento ousado que esta vida inventou em sua solidão infindável. (Atlantische Fahrt, Jünger)

 

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Carioca e quíchua – Eu nem sabia, mas Copacabana está historicamente ligada à Bolívia que me impressionou tanto quando, ainda jovem (ano 7 a.C, antes de Clara), me encantei com a dignidade dos aymarás e com a estranha paisagem de La Paz e de Copacabana, à beira do lago Titicaca (eu, tão ignorante, achava que o nome era cópia de nossa famosa praia). O nome vem do quíchua, Cópac Awana, que a malandragem indígena escondeu sob as vestes de uma Nossa Senhora. Mas, a maior alegria, foi descobrir, com Tom Jobim, que me acompanha nesses dias infernais de pós-operação (“o procedimento foi um sucesso”, a frase do cirurgião não para de ecoar em minha cabeça), que a lagoa Rodrigo de Freitas (por que botamos nomes feios de gente em lugares tão lindos?) se chamava na verdade Sacopenapã que significa um monte de socós. Era também esse o nome do bairro onde antes dos brancos cristãos (povo que traz a morte) viviam os tamoios. A música e os pássaros me ligam a Tom, meu xará.

 

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Endívias violáceas – Dixit Anatol (c.1960): “A força de Jünger não reside nas obras narrativas, mas, além de nas descrições de guerra, principalmente em certo tipo de diário estilizado em que se distinguem descrições de paisagens, viagens e sonhos ou de besouros, borboletas, flores, cobras, peixes, etc.” São, dixit, dixit, dixit, capriccios e scherzi noturnos.

 

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Setembro de 2015 – “Durma bem, meu amor. Liebe dich. A”

Dormi bem e profundamente, já estou no trabalho. Sim, tô melhor hoje. Não queria pesar seu coração. Mas há dias em que se está mais à flor da pele. Linda sua foto. Liebe dich, A.”

 

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Vou m’embora – Se eu soubesse / teria fugido pra Tasmania com minha hérnia inguinal / e lá viveria em lua de mel / até que o corpo cedesse à quebradura / e eu me transformasse em saudade

 

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A flatulência dos bois fura o céu – Assim que meu intestino voltou a funcionar recebi pelo correio livro do poeta Nemesio Gamboa. Leio No le toques ya más, / que así es la bosta: No ha- / brá paz en una sociedad / carnívora ni habrá bue- / nos gobiernos cuando / se desprecia la ensala- / da y se la pone en una / punta de la mesa, siem- / pre a punto de caer. Gamboa dixit, dixit, dixit.

 

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Sem você – Esses dias, tô todo Tom

 

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Jünger e seu leitor – Lá vai o barquinho, aliás, o Monte Rosa, levando o escritor e polemista Ernst Jünger ao Brasil, com uma parada nos Açores. Enquanto ele navega (outubro de 1936), leio Nos penhascos de mármore, publicado em 1939, aquele mesmo que Antonio Candido liga à viagem atlântica. E leio na tradução de Tercio Redondo, edição que traz o ensaio de Candido e um excelente posfácio do tradutor. Como comprei um livro usado, me divirto vendo as anotações desse que leu antes de mim, Armando de tal, quase todas feitas a lápis com uma letra trêmula.

 

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Preto e vermelho – Sigo suas anotações, com datas – 2009, 2010, o livro saiu em 2008 – e vejo, por exemplo na página 41, capítulo 6, “aspirar o tempo”, Platão? Um pouco adiante, pela primeira vez, a caneta azul contorna o nome de Lineu. Duas vezes, aparece a palavra “tese”, “ver tese”. Mas é no capítulo 25, cinco antes do final, quando estoura a guerra, que as anotações passam a ser feitas em vermelho, traços grossos, indicando a intensidade da leitura, ou da rejeição. Aí está a frase em sua letra trêmula: Hitler tinha razão! Esse era um dos seus! E uma data, 13/05/2010.

 

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Epistolário – O vento sul traz carta de Nemesio: Espero que las cositas de la salud – llamarlas así, "cositas", con el propósito de reducirlas a polvo – vayan mejorando segundo a segundo. Abrazazo, grandísimo amigo! Nemesio

 

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Apropriação indébita – Os médicos chamam operação de procedimento e os publicitários, de conceito a mensagem que se quer transmitir ao consumidor. Que mundo miserável!

 

PS – Terminei a leitura de Nos penhascos de mármore. Deslumbramento! Brecht tinha razão: deixem Jünger em paz, ele escreve um belíssimo alemão. 

Dibujo Marcelo Praça

 

 

 

(Actualización mayo – junio 2018/ BazarAmericano)




9 de julio 5769 - Mar del Plata - Buenos Aires
ISSN 2314-1646