diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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“Procuro (essas imagens da infância)
não com o propósito de ter na mão
o irrecuperável do acaso biográfico e sim
o irrecuperável necessariamente social”
Walter Benjamin
“No pátio branco, as árvores enfileiradas,
marciais, despojavam-se das folhas amarelas,
que voavam lentas na aragem branda. Havia
no céu um desperdício de tintas”
Graciliano Ramos
Cinematógrafo – As imagens mudas cuja luz ainda oscila nos levam a um dia de 1911, no norte do Brasil, não muito longe da fronteira com a Venezuela e a Guiana Inglesa, em Koimélemong. Vemos Theo Koch, de roupa e chapéu brancos, cercado de índios, cinco agachados e três em pé atrás do antropólogo, que aparece de lado. Uma índia invade o quadro vindo da esquerda, serve algo, que Theo logo oferece a esse que está a seu lado vestido com calça, camisa e boné, esse que mantém durante quase toda a cena as mãos sobre os olhos e que indica à índia que serve o lugar em que deve colocar o que traz – será Pitá, chefe Manuel? Uma cena de 20 segundos em que Theo cintila, sentado sobre uma pedra ou um pequeno banco, entre os Taulipáng e os Makuschí. É sua terceira viagem ao Brasil.
A hora próxima – O carteiro trouxe a edição de capa dura, vermelha, sem nenhuma apresentação, a não ser, na página à esquerda da folha de rosto, a inscrição, no alto, “Coleção ROMANCES DO POVO, direção de Jorge Amado”, embaixo da qual alguma coisa está rasurada. No pé da página, o nome da editora: “Propriedade da EDITORIAL VITÓRIA LTDA, Rua do Carmo, 6 – sala 1306 – Rio”. Na folha de rosto, de cima pra baixo, Alina Paim, A HORA PRÓXIMA, o desenho de um homem e uma mulher com as mãos dadas e levantadas, Rio de Janeiro, 1955. Um carimbo azul do Clube Juiz de Fora, de Minas Gerais, está estampado no centro da primeira página, com manchas amarelas do tempo, após a capa. Acima, à direita, um pequeno e retangular adesivo nos informa o nome do sebo de Juiz de Fora. Antes de começar o primeiro capítulo, acima do número 1 centralizado, há um carimbo azul da Biblioteca do Clube de Juiz de Fora, preenchido a caneta: número 1 280, data de entrada: 21/2/64, e o nome da bibliotecária: Cilene, nome também de um monte no Peloponeso, Grécia, onde, segundo a mitologia, nasceu Hermes, o carteiro dos deuses.
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Subterrâneo sujo e infame – Está no capítulo 19 do Segundo Volume, Pavilhão dos Primários, das Memórias do Cárcere. É introduzido por uma série de expressões: hábitos inimagináveis, relações estranhas, esquisita moral, sensibilidade diversa da das pessoas comuns, paixões violentas, negócios escusos, inadmissíveis. Adentramos o segundo parágrafo, ainda sem saber a razão dos gritos desesperadores que detonam o capítulo e o que incomoda tanto o narrador. Para não nomear, escolhe “essas coisas”, logo substituídas pelo pronome oblíquo “las” na sequência de verbos: explicá-las, aceitá-las, admiti-las, negá-las. Nomeia essas coisas então como “aqueles horríveis desvios”, segue-se a uma série de perguntas: “Narro com reservas o que me narraram, admito restrições e correções”. Os becos da língua. Finalmente, o terceiro parágrafo nomeia e introduz o tema: “Os gritos daquela noite eram de um garoto violado”.
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O cá e o lá – Um dia na universidade federal para uma banca de mestrado sobre as cartas de Graciliano descubro um ganso berrando em frente ao prédio de Letras. É branco, de bico laranja e muito invocado. Ganso chinês-branco, sinaleiro. Quando morávamos na Trindade, no fim dos anos 80, na nossa rua tinha um grupo de gansos que às vezes nos fazia correr e fechar rápido o portão da casa. Clara era pequena.
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Infame e suja a imagem do subterrâneo – Pouco a pouco, narra, vamos nos acostumando à anormalidade na existência comum. Contágio, repugnância, nojo, escrúpulos, indecisa piedade, pervertidos, pessoas vulgares, semelhantes aos que perderam em acidente olhos ou braços. Os argumentos caminham avançando e recuando: “certo são desagradáveis quando neles predomina a linha curva, afectam ademanes femininos, têm voz dulçurosa, gestos lânguidos e caminham rebolando os quadris”. A análise, a reflexão, introduz então a dúvida: “Seremos diferentes ou tornamo-nos diferentes? (...) Será um nojo natural ou imposto?” A imagem do subterrâneo arde, tromba lorpa e safada.
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Licença poética – Os besouros salta-martins ou tec-tec são vagalumes da família elateridae, de cor marron escuro, cujos “olhos verdes” fascinaram Clarinha quando, pequena, íamos passar o fim de semana na “praia-de-casa-do-vô”, como ela dizia. Descobrimos esse simpático inseto coleóptero quando saíamos de casa ao anoitecer para observar o bando de morcegos (contávamos e passavam de cem) que deixavam a garagem para se entregarem às tarefas noturnas. Clara me perguntava o nome do vagalume. Eu nunca o tinha visto antes, conhecia os vagalumes com luz na traseira. Como lia muito na época sobre o Islã, disse que era Maomé (Pra ela, Gerda cantava: Maomé é um crente / do grandioso Alá / vende bolinhos quentes / no mercado em Bagdá). Só quando já grande, entre amigas, descobriu a “licença poética”.
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Cinematógrafo – O filme feito em Koimélemong (Aus dem Leben der Taulipang in Guayana, Filmdokumente aus der Jahre 1911), além do trecho que mostra Theo Koch cercado de índios, tem também cenas da preparação do milho e da mandioca, a produção de fios para as redes e dois pequenos índios brincando de cama-de-gato. O que chama a atenção nessa cena (Fadenspiel), o que me punge especialmente, é o sorriso do menino que trança os fios forjando formas. Ali há algo que escapa ao documento. No diário anota: “Eu e as crianças somos amigos. Mostram-me orgulhosas seus brinquedos simples (...). Mostram-me seus inúmeros ‘jogos de fios’. Entrelaçando engenhosamente um, raras vezes dois fios intermináveis, elas produzem diferentes figuras, a que dão os nomes mais estranhos”.
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Portentosa e altaneira – Vejo a sumaúma nas fotos que Mário fez na viagem à Amazônia, “Sumaúma nos limites Amazonas-Mato-Grosso / Margens do Madeira, 11/VII/27. Em contraste com o imenso tronco, Dolur (ou Mag?), pequena como um inseto, posa de bolsa e chapéu. Reencontro a árvore amazônica no Jardim Botânico do Rio. Deslumbramento.
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Imagem que arde – Mário está na Paraíba, entra no quarto do hotel, daqueles quartos antigos de pé direito alto, e lá está ela: “Não é nada importante porém me preocupou demais”. Passeou durante a noite de lua cheia e esbarrou com os “sons de um coco”. Era, narra, “uma crilada gasosa dançando e cantando na praia”. Deslumbrado, solta a frase eliminando a preposição: “Custei sair dali”. Mas a aranha insistia (“Fiz tudo isso aranha”) Adormece (“Deitei, interrompi a luz e meu cansaço adormeceu, organizado pela razão”) e quando abre os olhos, a aranha estava sobre ele, a razão já bem longe lá na ilha de Marapatá: “enorme, lindos olhos, medonha, temível”. E, em francês, a aranha falou: Je t’aime. (Ah, crilada gasosa, criançada cheia de gás)
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Salgo a caminar – No tempo das velocidades e dos inúmeros estímulos, a caminhada nos dá uma outra medida de tempo. Talvez não aquela das carroças do pampa argentino que tanto chamaram a atenção de Rugendas, mas certamente não a medida dos telefones celulares e da pressa consumista e sempre insatisfeita de nossos tempos de barbárie neo(?)liberal(?). Turismo é pecado e andar a pé uma virtude, disse Herzog em um manifesto.
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Câmara clara – Há também uma foto que não devo mostrar. É sim, em preto e branco, papel com brilho, e mostra uma jovem mulher fazendo uma pose sedutora em um gramado florido (nada na imagem diz, mas sei que foi tirada na Itália). A jovem tem os joelhos levemente dobrados, está em pé sobre uma esteira, a mão esquerda sobre a coxa e a direita levantando a parte de baixo do macacãozinho branco, num gesto provocativo premeditado. A cabeça, um pouco caída para trás e virada para a esquerda, apresenta os olhos fechados e a boca semiaberta. O pequeno macacão branco tem o primeiro botão do peito aberto. Toda a cena, como poderia imaginar?, foi construída para incendiar minha imaginação mais de trinta anos depois. Curioso que uma imagem tenha que esperar para encontrar por acaso um dia seu Spectator.
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Wiederholungszwang – Devo repetir, pois também a insistência de Graciliano me leva a isso: “era um mulato claro, de fisionomia doce”, narra. Em seguida vêm as palavras em jorro: anormal sensibilidade, esquisito indivíduo, voz dulçurosa, amabilidade excessiva, brandura pegajosa, gordo, imberbe, olhos mansos, beiços flácidos, contra as quais enumerava suas reações: violento choque, desgosto, sensação molesta, náusea, repulsa, nojo, gratidão e pesar. Poderia continuar: infeliz, sexo duvidoso, aparência equívoca, procedimento invulgar, mas é melhor me deter na conclusão: “Era aquilo, sem dúvida”. O pronome demonstrativo que aponta para a coisa embora não a nomeie. Não conseguia vencer a repulsa, o nojo, mas algo ali o pungia: “na torpeza nauseante havia alguma coisa muito pura”.
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As perguntas do velho Graça – Claro, tanto Rugendas quanto Theo Koch são gente, com todas as marcas que as gentes têm e por isso não podem escapar de seus limites históricos e biográficos. Os amigos de João Maurício eram da classe dominante e ele era formado por uma ideologia que tinha os homens brancos cristãos como centro. Por isso, em sua Voyage Pittoresque, no capítulo “Usos e costumes dos índios”, aparece essa pérola ao falar dos habitantes do Rio: “raramente se encontram bêbados, mesmo entre os brasileiros da mais baixa categoria. Tais excessos são mais frequentes entre negros e índios”. Como se não bastasse, a frase remete a uma nota: “Diremos, uma vez por todas, que, por brasileiros, entendemos os brancos nascidos no Brasil ou os habitantes cuja cor se aproxima do branco”. Perguntei ao velho Graça e ele me respondeu: Talvez a gente não seja tão diferente. E me enchi de ternura por João, por Graça, por Theo.
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Ataque de coprolalia – A mucosa colorretal é rósea, lisa, brilhante e apresenta a rede vascular submucosa visível em todos os segmentos. No sigmoide presença de divertículos, de boca estreita, sem sinais inflamatórios. No cólon ascendente, um pólipo séssil retirado com fórceps de biópsias, sem intercorrências. O íleo terminal tem aspecto endoscópico normal.
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Ele também – Mário começou a estudar alemão em 1922 e teve três professores, duas mulheres e um militar prussiano. Em sua biblioteca, havia livros de Goethe, de Schiller, de Heine, além do grande interesse pelo expressionismo. Seu amor pela língua alemã aparece em Amar verbo, intransitivo, indiretamente em Macunaíma, na leitura atenta de Theo Koch, e aqui e ali nas crônicas. Eu havia lido “O besouro e a rosa” no segundo grau e aquele texto ficara. Depois, meu interesse por Mário acabou fazendo a volta no sul, na Argentina, prata herdada da erudição de um mestre que comeu toda a biblioteca do doce modernista.
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Antropofagia gutural ou caxiri-bejatim – A primeira vez que li Bellatin foi pelas mãos africanas e japonesas de Ríos y Porrúa. Era Perros Héroes e fiquei com a impressão de que não sabia o que fazer com aquilo. Depois, o texto me mordeu e fui devorando tudo o que encontrei pela frente. O engraçado é que pra mim Bellatin (digo, Bejatim, na escrita brasileira que tenta imitar a fala porteña) é argentino ou seja me chegou por vias argentinas e, como depois conheci, era um mexicano-peruano com passagem em Cuba, não me pareceu estranho que fosse argentino e nunca consegui remendar os dois ls na pronúncia que soa como nosso lh. Uma amiga que o leu por indicação minha ficou perturbada, rejeitou. Gostei. Era a confirmação de que o texto mordia, operava. Traduzi-lo foi uma forma de aumentar a incorporação, mastigando diariamente suas frases para cuspi-las em português e depois me embebedar. Caxiri-bejatim.
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O tal do procedimento – Abro aspas: Por isso em vários momentos do livro, foi melhor deixar que ele próprio relatasse os eventos que viu, as impressões que teve, as reações que manifestou. Fecho aspas. Colho na gostosa introdução de Lilia Schwarcz (a vi uma vez no museu Victor Meirelles e confirmei a empatia) à biografia de Lima Barreto o que venho fazendo no meu diário. Abro aspas: O leitor há de perceber o uso recorrente nesta biografia: não raro o criador de Policarpo Quaresma pondera, interrompe e invade minha escrita. Fecho. Reabro. Em lugar de traduzir, dublar ou substituir o autor, é preferível “explicar com ele”; com os termos dele. Fecho.
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Caymmi engordado – Ouvi em uma canção (Massarandupió): como é que eu vou saber dormir longe do mar? Pensei, ponderei e encontrei uma saída. Ora, a esta altura da vida, o mar dorme em mim.
(Actualización mayo – junio 2018/ BazarAmericano)