diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Jornal de Brasil 
La trompeta del ángel vengador

Humildemente, mas com alegria e sem medo,

na obscuridade medieval da província,

ele pinta.

 

Anônimo, Joaquim (1946)

 

 

Não importa o prêmio Camões, os vários Jabuti ou o Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, da qual ele não é membro: o que importa é A trombeta do anjo vingador, Dinorá, Desgracida, Mirinha, A Polaquinha, Rita Ritinha Ritona, A gorda do Tiki Bar, Capitu sou eu, Pico na veia, Macho não ganha flor, Ah! é?... Os títulos são dezenas. O primeiro destes, da safra “clássica” do autor (anos 1960-70), apareceu em Buenos Aires em 2013 pela editora Mardulce em versão de Gonzalo Aguilar. A edição argentina é totalmente fiel à edição brasileira original na lista de relatos, 19 ao todo, começando por “Mister Curitiba” e terminando com “Paixão e agonia da cigarra”, ainda que algo dolorosamente infiel em relação à radicalidade no uso da elipse que caracteriza o escritor. O que me leva a uma pergunta, relacionada à tradução de seus inúmeros livros para diversas línguas (ver “Outras traduções” no final deste texto): como será ler os seus contos vertidos ao holandês? E, a partir daí, façamos eco ao estupor e desespero do leitor holandês citado por Otto Lara Resende, ao entrar em contato com a singularidade absoluta da arte literária em miniatura: “Quem então, meu deus do céu, é esse [seu nome]?”... E, também a partir daí, entendamos a agonia de Aguilar a cada supressão de palavras, sem poupar os próprios verbos, nesses relatos escritos em alguma variante impossível de nosso bárbaro e nosso português.

Seu nome, apesar da notoriedade e dos 92 anos (completos no dia 14 de junho), é pouco pronunciado no Brasil. Visto em geral como pessoa antipática, escritor arrogante e distante do mundo, não dá entrevistas e não quer ser fotografado, muito menos filmado. Costuma responder, ao ser abordado na rua, que não é quem é. Além disso, é alguém da “época da literatura”, engolido pelo tempo presente, visto portanto como anacrônico e ultrapassado, além de cruel e desagradável. Ninguém precisa de mais para ser detestado a fundo – ódio, aliás, laboriosa e propositalmente desenvolvido como blindagem pelo próprio escritor, a fim de mantê-lo protegido na obscuridade medieval da província moderna...

Não foi sempre assim. A revista Joaquim, que dirigiu entre 1946 e 1948, e as suas muitas cartas – algumas poucas disponíveis para leitura na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro – mostram a face jovem do escritor em formação, já com um estilo mordaz e radical e, no entanto, cheio de dúvidas sobre seu próprio trabalho e com algo de fé na humanidade, ainda. Seus destinatários, nesse período e não por acaso, são de origem mineira: Carlos Drummond de Andrade, Carlos Castelo Branco, Fernando Sabino, Otto Lara Resende – este o mais chegado e de interlocução mais duradoura. Por sinal, ele tem retomado velhas cartas ao Otto, republicando-as em livros recentes. Numa delas, critica com ferocidade o Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa: não pode admitir a ambivalência sexual de Diadorim, que chama de Diadorão – assim como não admite qualquer dúvida em relação à traição de Bentinho por Capitu em Dom Casmurro, como se pode ler em distintos textos dos últimos tempos.

Há um escrito de Otto Lara Resende dedicado a ele, que foi o raro prefácio de um de seus livros dos anos 70 e reapareceu nas orelhas e quarta capa de Abismo de rosas (1976). Nele, Otto mostra o outro lado do monstro avesso ao mundo: um homem não apenas vivo e ativo, como receptivo e boa gente (o mesmo se pode verificar em rara entrevista concedida pelo escritor a Luis Vilela, incluindo fotografias, em 1968).

Aquela pergunta – “Quem, meu deus do céu, é esse... ?” – se repete, segundo Otto Lara, “também no inocente Paraná”: “Porque ele próprio se propõe essa pergunta todo santo dia, no silêncio do seu coração e no frio escritório no fundo de sua casa – na cela indevassável onde cumpre pena cruel e rigorosíssima, com trabalho forçado diário de pelo menos cinco horas”...

Mas isso é da “época da literatura”, em passado já distante, eternizado em mandato do presente, que vem a ser a confusão entre o escritor e suas vozes, decreto do princípio e fim da literatura em tempos de morta-viva. Os personagens dele são maus e cruéis, há pedofilia e violência de todo tipo, portanto, se trata de um cara mau. Por outro lado, na conversa com Vilela, ele afirma que todo escritor é um “monstro moral”. Se, no entanto, pudermos propor um contraste ao modo de Luis Vilela e de Otto Lara, essa carga pesada do Mal vem sempre calibrada pelo lirismo kitsch de sua escrita para sempre desconhecida por deliberadamente pasticheira, datada e deslocada, ou mesmo descabida, em relação aos padrões da língua.

Persistente para sempre, porém, sua literatura continua incidindo em alguns de nós, sua imensa minoria de leitores. E a bem dizer só há um livro, ao menos um único ensaio de fôlego, na estante de sua fortuna crítica, único digno, me parece, do autor: o de Berta Waldman do início dos anos 80, ainda e sempre: Do vampiro ao cafajeste. Uma leitura da obra de...

Com a publicação do primeiro livro oficial, Novelas nada exemplares (1959), as coisas começam lentamente a mudar: o impacto deste livro entre alguns poucos e bons leitores brasileiros, apesar do fracasso editorial inicial, somado à precoce consagração obtida a partir dos seguintes – Cemitério de elefantes é o título do segundo (1964) – no meio literário brasileiro, vão tornando o escritor cada vez mais avesso à fama que cresce na mesma proporção. No início da década seguinte ele seguiria trabalhando quieto, obstinado e sem trégua. Não se pronuncia sobre nenhum debate público específico sob a ditadura militar brasileira, mas se aproxima de um cineasta ligado à esquerda para realizar o filme Guerra conjugal (disponível nos oráculos digitais). É um momento de indiscutível alegria, apesar do cenário nacional e latino-americano do ano do aparecimento do filme, 1975, sombrio e violento. O filme em parceria, com diálogos escritos por ele, é um pornô chique de uma força e de uma cafonice maravilhosas, com atores e atrizes divinos vivendo os pequenos dramas do cotidiano da província, entre o bordel e a sala de estar.

Se há alguma cronologia em sua obra é a da busca desesperada pela máxima concentração. Antes mesmo que os textos, as frases diminuíram a partir daqueles tempos heroicos sob o regime militar: a elipse se tornaria a figura-mãe de sua escrita. De modo que a versão de Aguilar soa em espanhol menos elíptica do que se tornou, ao longo do tempo, o português brasileiro provinciano sulista do escritor. O sistema linguístico espanhol não o permite? Como ele escreveria em castelhano os seus relatos? Aliás, como Jorge Luis Borges, ele reescreve encarniçadamente os seus próprios textos, mas não só: ele também se dedica, com paciência de Jó e malícia de Saci, a misturá-los em novas séries, fornecendo-lhes títulos e mesmo gênero novos. Mirinha e Nem te conto, João (ambos de 2011), redefinidos como “novelas”, conforme se pode ler nas respectivas capas, são coletâneas de falas reapropriadas e reencontradas, garimpadas de livros anteriores, todas em discurso direto, vozes dos sem-terra do verbo em suas domésticas Pasárgadas em ruínas.

Faz pouco tempo, Alberto Giordano em “Ejercicios de supervivencia” (Página12, Rosario, 29 de abril de 2017) abordou a figura da elipse a partir da forma do diário de autor que poderia ser usada para pensar o caso do autor de La trompeta del ángel vengador e sua versão, suas versões em castelhano (e preservo o texto em castelhano para que meus eventuais leitores castelhanos descansem um minuto do meu pobre português):

“Para alguien acostumbrado a la retórica de la argumentación, los ejercicios sintácticos de un diarista [que poderia ser o anacoreta curitibano definido por Otto Lara Resende] plantean exigencias ascéticas a las que no siempre podrá responder. Las que se derivan de la necesidad de radicalizar la pauta interrupción/recomienzo, y de la conveniencia de apostar a la elipsis en todos los niveles (suprimir las conjunciones, las transiciones; suspender sin concluir; sugerir sin presentar; afirmar y no oferecer pruebas), arriesgándose al equívoco o el malentendido. Más peligroso es el requerimento de escribir sobre uno mismo sin la prótesis de los gestos críticos, para registrar y explicarse las rarezas de lo trivial. Hay que aprender a no retroceder frente a la propia estupidez, cuidar también de ella sin cortejarla, sin abandonarse por completo a las seducciones del sentimentalismo y la autocelebración. Diría que pocas veces se logra”.

Diria que o logra a obra em questão, enquanto obstinação tão cotidiana quanto infinita, semelhante à escrita de um diário, ainda que à escritura de um diário visto como moeda falsa. Creio, além disso, que a proposição de Giordano também pode ser útil para seguir traduzindo os livros desse miniaturista máximo na direção em que ele próprio conduziu o seu trabalho, aquela da concentração sintática e semântica total e irrestrita, a ponto de cunhar para seus textos um neologismo nem tão novo assim – o de ministórias – que ele, no entanto, tornaria pessoal e intransferível, à base de intermináveis doses de repetição e diferença.

Enfim, que se leia La trompeta del ángel vengador na versão de Gonzalo Aguilar por Mardulce. Para que continue sendo vertido ao castelhano, de maneira cada vez mais pervertida.

 

Outras traduções:

Novelas Nada Ejemplares. Tradução de Juan Garcia Gayo. Caracas: Monte Avila, 1970.

De Koning der Aarde (O Rei da Terra). Tradução de August Willemsen. Amsterdam: Meulenhoff, 1975.

The Vampire of Curitiba and Others Stories. Tradução de Gregory Rabassa. Nova York: Alfred Knopf, 1972.

El Vampiro de Curitiba. Tradução de Haydée M. J. Barroso. Buenos Aires: Sudamericana,1976.

De Vijfvleugelige Vogel (O Pássaro de Cinco Asas). Tradução de August Willemsen. Amsterdam: Meulenhoff, 1977.

 

 

 

(Actualización mayo - junio 2017/ BazarAmericano)




9 de julio 5769 - Mar del Plata - Buenos Aires
ISSN 2314-1646