diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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“Oh menschliches Geschlecht”
Do recitativo do tenor da Cantata 147, Bach
Assisto emocionado pela televisão russa (e isso não é um acaso) o discurso de Alexis Tsipras na praça Syntagma, diante do Congresso dos Helenos, em Atenas, há dois dias do referendum sobre o programa de “Austeridade” que a Europa (leia-se, Alemanha e um carrasco holandês de nome impronunciável e, claro, todos os puxa-sacos que nenhum poder têm mas que desejam mostrar ao mestre que são feitos do mesmo barro) tentou, desde que cheguei a Frankfurt em fevereiro, enfiar goela abaixo do povo grego. Acompanhei na imprensa alemã, a imensa má vontade e a campanha de descrédito ao ministro Varoufakis, acompanhei a entrevista que a televisão alemã fez com Varoufakis escondendo uma armadilha mentirosa (um vídeo que depois foi colocado sob suspeição, pois tinha sido manipulado), acompanhei a maneira dura e desrespeitosa de todos os membros da tal Comissão Europeia que representavam seu papel de pais austeros que desejam dar uma lição a seus filhos rebeldes e preguiçosos. Nesse momento em que alemães e gregos não encontram uma língua comum, que uns constrangem no sentido de fazer rodar o círculo da economia, dom e contradom, e outros criam, chocam, o momento do impossível, vale lembrar que a filosofia sempre foi um elo forte entre a Grécia e a Alemanha. É muito triste ver a Alemanha outra vez exercer um papel de carrasco sob os aplausos de uma Europa falida, corrompida, que apoia servilmente todos os esforços de guerra dos Estados Unidos. Estou me despedindo da Europa com o coração dividido, meu amor pela língua alemã e meu desprezo aos engravatados dos Bancos Centrais da vida (ou da morte). Onde o dom? A gratidão?
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A Grécia disse um belo e sonoro Oxi. (E Pelé disse love, love, love)
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Vou ao balcão tomar um pouco de ar e pela primeira vez, desde fevereiro, vejo a vizinha. Cumprimento-a discretamente. Engraçado, sigo o ritmo da família dela desde que cheguei: os horários de chegada das crianças da escola, a correria das brincadeiras, o limite imposto pelo pai, sons de piano, além das flores no balcão, sempre cuidadas. Nos primeiros meses, de frio e solidão, esses ruídos da vida alheia eram as marcas que dividiam meu dia, basicamente ocupado pelo texto de Simmel, pelos exercícios de Pilates e pelo violão. Há um encanto muito especial na solidão. É com ela que nos fazemos leitores, que aprendemos com a repetição a deixar a mão dócil correr pelas cordas, que ouvimos os ruídos do mundo, dos vizinhos, dos pássaros, do trânsito, dos sapatos da vizinha de cima que sai todo dia antes das 9h para trabalhar, das crianças de Frau Caponi a gritar pelas escadas. Agora, volto a ficar só, mas é verão. Janelas abertas.
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Traduzo Dankbarkeit, Ein soziologischer Versuch (Gratidão, uma investigação sociológica), ensaio que Simmel publica em 1907 – mesmo ano da segunda edição da Philosophie des Geldes – em Der Morgen, no número 19 de 18 de outubro da revista fundada e dirigida por Werner Sombart, Richard Strauß, George Brandes e Richard Muther, com a colaboração de Hugo von Hofmannsthal, ao mesmo tempo que vou lendo o Essai sur le don, de Marcel Mauss, sempre com a Grécia na cabeça e a curiosa situação da chamada União Europeia (notícias, arghh: Grécia aceita humilhada, ajoelhada o “acordo” com a Troika: “Fiz o melhor que pude”, diz Tsipras, mas nós queríamos o impossível, o dom. Saudades de Derrida). Curiosamente, o ensaio de Mauss termina com uma citação do Corão: a sura LXIV, especificamente os parágrafos 15 a 18. A 15 diz: “Em verdade os vossos bens e os vossos filhos são uma mera tentação. Mas sabei que Deus vos reserva uma magnífica recompensa.” A 16 termina assim: “Aqueles que se preservarem da avareza serão os bem-aventurados.” A 17 repete algo que também o cristianismo ecoa: “Se emprestardes a Deus espontaneamente, Ele vo-lo multiplicará ou vos perdoará, porque Deus é Retribuidor, Tolerante”. Substitua o nome de Alah, diz Mauss concluindo, por sociedade (...), substitua o nome esmola por cooperação, trabalho, serviço prestado para um outro: “vous aurez une assez bonne idée de l´art économique qui est en voie d´enfantement laborieux. On le voit déjà fonctionner dans certains groupements économiques, et dans les cœurs des masses qui ont, bien souvent, mieux que leurs dirigeants, le sens de leurs intérêts, de l´intérêt commun.”
O ensaio sobre a Gratidão, que depois, 1908, seria incluído em sua Soziologie: “A relação entre seres humanos se tornou uma relação entre objetos. A gratidão advém, então, ao mesmo tempo da e na interação entre humanos e justamente a partir de seu interior, assim como de seu exterior nasce aquela relação das coisas. Ela é o resíduo subjetivo do ato de receber ou também do ato de dar. (...) Pode-se dizer que não se trata aqui de maneira alguma de uma retribuição do dom, e sim, com a consciência de que ele não poderia ser retribuído, de algo que aqui acontece, algo que lança a alma daquele que recebe em uma determinada posição duradoura em relação ao outro, que traz à consciência a impressão da infinitude interna de uma relação que não pode ser preenchida, nem concretizada por nenhuma atividade final”.
Em Donner le temps, dixit Derrida: “Or le don, s´il y en a, se rapporterait sans doute à l´économie. On ne peut pas traiter du don sans traiter de ce rapport à l´économie, cela va de soi, voire à l´économie monétaire. Mais le don, s´il y en a, n´est-ce pas aussi cela même qui interrompt l´économie? (...)S´il y a don, le donné du don (ce qu´on donne, ce qui est donné, le don comme chose donnée ou comme acte de donation) ne doit pas revenir au donnant (ne disons pas encore au sujet, au donateur ou à la donatrice)”. Enredado nos círculos: Simmel, Mauss, Derrida.
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Outra obsessão: uma canção de Amy Winehouse, Back to Black. Não é especialmente difícil, mas tem esse jogo gostoso entre a melodia, a frase, e o tempo de dois compassos em quatro tempos cada. Ouço muitas vezes. Wiederholungszwang. Toco junto: em Ré menor, batendo: Um, dois, três, quatro, Um, dois, três, quatro. Depois mudo o tom, Lá menor, e balbucio lentamente a letra: He left no time to regret, a frase que se espalha nos dois compassos de quatro. Kept his dick wet, uau!, With his same old safe bet. Procuro um jeito, vou fazendo-a minha, batendo um sambinha e sussurando: We only say Goodbye with words (por supuesto oder Natürlich), I die a hundred times, You go back to her and I go back to black.
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Em janeiro, em Buenos Aires, Claudia me contou algo sobre uma relação de Georg Simmel com uma aluna e de uma filha fora do casamento. Encontro no depoimento de Margarete Susman publicado no Buch des Dankes an Georg Simmel a história: “Entre esses convidados (que eram recebidos na casa de Simmel) havia, claro, sempre Gertrud Kantorowicz de quem fiquei amiga em Munique quando estudávamos juntas. Foi através dela que conheci Simmel. Gertrud Kantorowicz – um nome que está profundamente ligado à vida de Simmel, mas também a minha própria vida – foi um dos seres mais singulares que conheci. Não apenas sua grande e particular inteligência e seu talento poético, mas também seu demônio elementar, forte tanto para o bem quanto para o mal, parecia subtraí-la de certa maneira do círculo dos puramente humanos. Em nossa juventude, eu a chamava de das Wesen (o Ser) porque ela me parecia, em sua natureza e espírito, não totalmente humana, não totalmente pertencente à realidade. Por causa de seu lindo cabelo, de tom avermelhado escuro, castanho, e de seu jeito de ninfa, eu a assemelhava à delicada Faia púrpura – Fagus sylvatica, Blutbuche, aliás, Fagus sylvatica purpurea, ou Haya, Fayard, Beech (N.T.) – em nosso jardim comum e a chamava por isso de a menina da Faia púrpura (Blutbuchenfräulein). Só depois fiquei sabendo em quantas vidas ela interveio, de maneira ativa e cuidadosa. Não era apenas uma intervenção humana, mas a intervenção de uma força. Não muito antes do final da Segunda Guerra foi capturada na fronteira da Suíça por guardas alemães e mandada para Theresiensdtadt, onde morreu pouco antes da libertação pelos russos; no campo, foi um grande consolo que diminuiu para muitos o terrível sofrimento. Uma coleção de poemas de Theresienstadt impressa por seu irmão depois de sua morte dá testemunho da vida e do sofrimento na prisão. (...) Após a morte de Simmel (1918), ela se ligou totalmente a Stefan George. Mas Simmel foi o único homem ao qual sua poderosa natureza se dobrou naquele momento. Simmel tinha, com sua mulher, um único muito amado e talentoso filho, que como médico desde logo alcançou uma alta posição. Que mais tarde Simmel tenha tido com Gertrud Kantorowicz um filho – uma filha tão igualmente talentosa e cheia de caráter, Angi – não pode ser compreendido sem o fato de sua mulher, por razões determinadas, ter permitido essa relação. Se pertence também ao destino de Simmel que esses dois filhos, que após sua morte entraram em contato, tenham morrido quase no mesmo dia, distante um do outro, o filho nos Estados Unidos, a filha na Palestina? Simmel nunca se permitiu, pois amava muito sua mulher, ver essa criança. Esse segredo nunca falado, mas sempre pressentido, lentamente turvou o belo casamento.
(...) Simmel se sentia obviamente sempre culpado nessa relação com a filha. Daí vem com certeza essa frase em seu Diário: ‘A simples e grande tragédia da moral: não ter direito àquilo em relação a que se está obrigado.’ O que Gertrud Kantorowicz e seu destino significaram para Simmel brilha em muitas partes de sua obra, de maneira mais clara no capítulo sobre o Segredo (Geheimnis) de sua grande Sociologia, mas também, certamente, em sua concepção de “lei individual” (individuellen Gesetzes). Nela, viu a unidade interna prenhe da lei de uma vida que não recebeu, nem acolheu nenhuma lei externa. Ele sempre atribuiu a lei individual às mulheres, assim como sempre ocupou sua mente com a mulher e com Eros em todas as suas relações e formas.” Margarete Susman e Gertrud Kantorowicz traduziram sob orientação de Simmel Introduction à la metaphysique e L’évolution créatrice, de Bergson. A elas ele dedicou seu ensaio sobre a religião.
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Sento em um café no centro da cidade. Passo os olhos no Frankurter Rundschau, com o cheiro gostoso do café diante de mim, e os dedos engordurados de croissant. O primeiro moço pede dinheiro, está malvestido, sem banho. O segundo também se introduz em um alemão sussurrado, a cabeça baixa. Por um momento, o tempo para e eu estou em Copacabana, na Avenida Atlântica, sentado em um bar tomando cerveja.
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An der Hauptwache, escuto ao passar pela igreja de Santa Catarina (St Katharinenkirche, como quase tudo por aqui, destruída em 1944, reconstruída em 1954) o som do órgão. Entro. Não é possível passar, umas cordas interrompem a entrada. Fico ali, em pé, olhando pra cima, maravilhado diante do som que toma todos os buracos da igreja: Bach.
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De um ensaio de Margarete Susman, die Geistige Gestalt Georg Simmels: Zwei Worte begegnen uns bei Simmel immer wieder. Die Worte “vielleicht” und “sozusagen” (Duas palavras encontramos sempre repetidas em Simmel. A palavra “talvez” e “por assim dizer”).
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Volto a Luzern depois de 30 anos. Meu amigo Alois Sigrist já não mais está lá, mas revejo o prédio onde moramos na Winkelriedstrasse, perto do supermercado e do Arlecchinno, onde ele gostava de tomar café no sábado, antes de ir à feira na beira do rio Reuss, e vou dar um alô a ele no cemitério em Kriems, perto de onde ainda mora sua mãe. Dias de muita emoção com os amigos, com a filha linda de Alois, com Tiêta que me recebe com o maior carinho, com Jean-Pierre e suas duas filhas, com as montanhas, o lago (Vierwaldstättersee), a casa dos Wagner, Richard e Cosima, onde o jovem Nietzsche, professor em Basel, aparecia para curtir seus então amigos. Me surpreendo com a substituição dos turistas americanos e japoneses pelos chineses e indianos, e me encanto com som do schwyzerdutsch. Acostumado ao hochdeutsch de Frankfurt, não consigo evitar a onda de ternura e afeto que a memória me traz. Os “erres” super fortes, a musiquinha meio cantada de povo da montanha (meio mineiro) fazem ecoar algo dentro de mim. We only say Goodbye with words, natürlich. Requiem.
(Actualización julio – agosto 2015/ BazarAmericano)