diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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“Und wie schön dünkte das Herrenhaus
mich jetzt, da es unmerklich dem
Rand der Auflösung sich näherte und
dem stillen Ruin”
Sebald
Devagarzinho vou me acostumando à cidade, à solidão do trabalho com o texto, solidão de que aprendi a gostar desde quando subitamente me vi separado de minha família depois de 20 anos de vida conjunta e que colabora comigo na hora da leitura, da escrita e da intimidade com o violão. Me acostumo também ao fraseio da língua, tanto nas poucas palavras trocadas com o caixa do supermercado, com algum garçom em um restaurante, ou com o professor que me ajuda na compreensão da Filosofia do Dinheiro, quanto, especialmente, nos livros, como o que agora saboreio: Die Ringe des Saturn, eine englische Wallfahrt, de W. G. Sebald, autor traduzido no Brasil e na Argentina, de quem já havia lido, em português, Austerlitz e Os emigrantes, e cujas frases longas, sinuosas me deixam hipnotizado à espera do verbo principal que, sei, virá, impávido que nem Muhammed Ali, lá no final quando já quase havia desacreditado da esperança sintática; ou ainda nesse delicioso texto do Buch des Dankes an Georg Simmel que Marianne Weber, companheira de Max Weber, escreveu sobre o casal Simmel e que me punge, me comove, por essa mistura de saber e afeto. Essa mesma solidão que me faz, estrangeiro no Baixio dos Francos, apreciar particularmente o sorriso solidário desse frankfurtiano bem vestido de cabelos brancos que, na feira de sábado da Konstablerwache, me deseja bom apetite com um copo de Apfelwein quente e uma Bratwurst naquelas mesinhas altas que, por força das circunstâncias, nos aproximam. Solidão que também acompanha o narrador Sebald em sua peregrinação pelo condado de Suffolk, um lugar que traz as marcas do passado e que se mostra desolado no momento da narração: “E que bela me parece agora a casa senhorial que imperceptivelmente se aproxima do limite da dissolução e da ruína silenciosa”. São essas ruínas que não só me levam de volta à pequena joia que Simmel escreveu e publicou em 1907, Die Ruine, ein ästhetischer Versuch, na revista berlinense Der Tag e que tive o prazer de traduzir, como também ao palimpsesto dessa cidade destruída pelos bombardeios das forças aliadas: nas grades que cercam a reforma do Museu Histórico, situado entre o Römer e o rio Main, posso ver as fotos que mostram as ruínas do Römer em 1945 – no museu, outro traço de uma cidade desaparecida: as fotos que Gisèle Freund fez com sua Leica de uma grande manifestação do Partido Comunista e de estudantes de esquerda no dia 1º de maio de 1932 no centro dessa cidade onde a berlinense de origem judaica estudava – no Institut für Sozialforschung – com Karl Mannheim e com seu então assistente Norbert Elias antes de fugir para Paris e de lá para Buenos Aires. Sob a cidade moderna dos francos, havia outra que, como a Paris de Walter Benjamin ou minha cidade do Rio, sofreu muitas modificações durante o século XIX deixando para trás a urbe patrícia da Idade Média para, sob os avanços inevitáveis de uma nova era industrial, dar lugar à moderna metrópole que ironicamente é chamada de Mainhattan. A rua em que moro, no Nordend, não longe do campus Westend da universidade, Adickesallee, é uma homenagem a um dos prefeitos que modernizaram a cidade, Franz Adickes, um burocrata nascido em Hanover que participou da criação da Johann Wolfgang Goethe Universität e que foi Oberbürgermeister de Frankfurt de 1890 a 1912, substituindo a Johannes Miquel (prefeito de 1880 a 90), esse último responsável pela canalização do rio Main, pela construção da nova Hauptbahnhof (Estação Central), e, assim como seu sucessor, nome de avenida, aliás de uma que se liga à Adickesallee formando um sistema de anéis que fazem parte da transformação da cidade e da inclusão de novos bairros, Westend, Nordend, etc. Ambos os prefeitos continuam juntos no nome da estação da U Bahn (metrô), Miquel-Adickesallee, que me serve e me leva ao centro, à estação Hauptwache-Zeil, onde se assiste ao esporte contemporâneo das grandes capitais, as compras nas grandes lojas, e onde também se encontram os membros do Pegida (patriotas europeus contra a islamização do ocidente), nas segundas-feiras, e seus, felizmente em muito maior número, adversários; e à Südbahnhof, no bairro de Sachsenhausen, do outro lado do rio, de onde pego o ônibus 61 para chegar ao aeroporto. Foi assim na visita de Clara que entre outras coisas me contou que os Pegida alemães iam fazer uma manifestação em Newcastle, England, onde ela está estudando, em um sábado de jogo do Newcastle United contra o Aston Villa. O trajeto com o 61 até o Terminal 2, de Sachsenhausen por Niederrad, passando em frente ao Galloprennbahn, o Jóquei Clube de Frankfurt, e pelo Waldstadion, o estádio de futebol do Eintracht Frankfurt que desde 2005 passou a se chamar Commerzbank Arena – banco, aliás, que está sendo investigado por ajudar clientes ricos a fugir dos impostos via Luxemburgo, Panamá, etc – , e pelo enorme, triste e melancólico no inverno, Stadtwald, se tornou para mim por isso mesmo uma Wallfahrt, uma peregrinação (per agros) que me leva a pessoas queridas – que delícia impaciente aqueles momentos de espera no saguão tentando encontrar entre tantos rostos e corpos de turcos, alemães, árabes aquele único que me interessava, aquele que deu à minha vida uma dimensão maior. Peregrino é também um estrangeiro, um estranho, alguém que não cabe em si mesmo, nem no lugar que o rodeia, como Sebald, como Elias (Peregrinação de Watteau à ilha do Amor) e como eu aqui nesse Baixio dos Francos tentando conter minha excitação e minha alegria ao ver finalmente surgir no corredor minha filha Clara.
Em alemão, há muitas palavras para designar o estrangeiro: desde Ausländer, usado para chamar aqueles que moram no país, mas vêm de fora (aus + Land) e que tem uma conotação discriminadora; Fremder, alguém de outro país ou alguém não conhecido, ou Fremdling, alguém que se sente internamente estrangeiro ou a quem seu próprio meio parece estranho – é essa a palavra usada na tradução para o alemão do poema em prosa L’Étranger, de Baudelaire, e também a que dá nome ao poema de Novalis; fremd, o adjetivo que dá origem a esses substantivos e que qualifica uma pessoa que não pertence a uma terra ou a um povo, mas também se refere à alguém não confiável, desconhecido, não familiar (unheimlich); Auswärtiger, substantivo derivado de auswärts, para fora, de fora de casa; a Besucher, o visitante, a Gast, o hóspede, muito usado no caso dos turcos, italianos, gregos, espanhóis, marroquinos, iugoslavos que ajudaram a reconstruir o país depois da guerra, os Gastarbeiter. Vale lembrar o texto de Vilém Flusser, outro peregrino, Heimat und Geheimnis – Wohnung beziehen in der Heimatlosigkeit (Pátria e Mistério, Habitação e Hábito – Habitar a casa na apatricidade), escrito quando já havia deixado o Brasil da ditadura militar e morava no sul da França, em Robion, em que o autor da Filosofia da Caixa Preta faz uma crítica ao nacionalismo e a defesa da amizade e dos laços que uma pessoa escolhe: “Fui lançado em minha primeira pátria através de meu nascimento, sem ter sido perguntado se eu concordava com isso, as amarras que lá me atavam a meus consócios (Mitmenschen) foram, em grande parte, adotadas. Agora, com essa liberdade que alcancei, sou eu mesmo que teço as ligações com os companheiros e, na verdade, em trabalho conjunto com eles. A responsabilidade que carrego por meus companheiros, não me foi imposta, eu próprio a assumi”. Flusser, um judeu nascido em Praga, educado na língua e na cultura alemã, como Kafka, se diz um apátrida e explica: “Sou apátrida porque em mim encontram-se armazenadas várias pátrias”. Vale lembrar ainda a importância da noção de estrangeiro para Georg Simmel. O motivo do estrangeiro está espalhado um pouco por toda sua obra; de origem judaica – seu pai Eduard, comerciante de sucesso em Breslau se converteu ao catolicismo e casou com Flora Bodstein, também de origem judaica, mas batizada como protestante – Simmel foi batizado como protestante mas abandonou a igreja durante a Primeira Guerra. No Excurso sobre o Estrangeiro, texto que faz parte de sua Soziologie (1908) escreve: “Se o perambular (das Wandern), visto como o distanciamento de um ponto determinado no espaço, é o oposto conceitual da fixação, então a forma sociológica do estrangeiro apresenta em certa medida a unidade de ambas as determinações. (...) A unidade entre proximidade e distanciamento que constitui qualquer relação entre os seres humanos atinge aqui uma constelação que pode ser assim brevemente formulada: a distância no interior das relações significa que o próximo está distante, ser estrangeiro, por sua vez, significa que o distante está próximo”. Distanciamento e aproximação são duas noções chaves na obra desse escritor, filósofo, sociólogo e professor que encarnava em si mesmo essa dialética do pertencer não pertencendo. Durante mais de 20 anos, deu aula na Universidade de Berlim sem nunca ter sido aceito no corpo docente: “Foi um moderno homem urbano... um estranho em sua terra natal”, disse dele o sociólogo alemão emigrado para os EUA Lewis Coser. “Como o estrangeiro que descreveu em um de seus ensaios mais brilhantes, estava perto e longe ao mesmo tempo, era um ‘viajante potencial’”.
A cidade se abre pra mim discretamente, com essa discrição reservada que meus olhos peregrinos percebem nessa cultura ao mesmo tempo tão distante e tão próxima, ao mesmo tempo Geheimnis (segredo, mistério, enigma) e Heimat (lar, palavra mais afetiva que Vaterland, essa última carregada de sentidos reacionários), para manter o delicioso jogo instaurado por Flusser e que também aparece no termo Unheimlich, trabalhado por Freud. Distante, por exemplo, no susto que me deu ao receber minha primeira carta em meu novo endereço: era uma carta oficial, dos canais de televisão ARD e ZDF que me avisava – me ameaçava, assim eu senti – que tendo constatado que eu havia me registrado no Einwohnermeldeämter e não tinha um contrato de assinatura com eles, embora nesse endereço o serviço estivesse sendo disponibilizado, eu deveria no prazo de vier Wochen (quatro semanas) provar – zu prüfen – que ou já havia alguém pagando ou eu já tinha pago o tal contrato. Levei um tempo correndo atrás das palavras no dicionário para ter certeza do que estava acontecendo e então escrevi a minha simpática locatária, Klaudia, que rapidamente me tranquilizou e me deu o número de seu contrato. O que para mim soava como uma desagradável ameaça, era para ela normal, me disse: tranquilo, me acalmando com a única palavra em italiano na resposta, você só tem que responder a eles – vale dizer que ela é casada com um italiano que, na minha chegada, ao descobrir que eu entendia sua língua só se dirigia a mim em italiano me chamando de professore.
E próxima na paixão agora ainda mais cultivada pela língua, pela música, por esse encanto (Reiz é a palavra que Simmel usa) que me pegou nem me lembro quando, antes mesmo que eu soubesse das histórias de meu avô José e sua germanofilia. Poderia dizer, glosando Flusser, que habito algumas línguas e que com elas viajo desde adolescente pelas ruas de Paris, de Berlim, de Montevideo, de Buenos Aires, de Roma, de Atenas; elas me abriram o mundo em uma época em que viajar era um privilégio das classes mais ricas no Brasil. Cultivei-as com essa paixão do amador, sem me preocupar com diplomas ou com uma especialização, seguindo o conselho que meu avô José deu à sua filha Haydée para ler em francês: vai lendo, uma hora as palavras começam a fazer sentido, aquilo que estava nebuloso se oferece aos olhos amigos mostrando seus mistérios (Geheimnis) e tornando-se o lugar da habitação (Heim) – em outro registro diz Cecil Taylor: “Discipline? No! The joy of practicing leads you to the celebration of creation!”. Foi assim que aprendi a conhecer que a língua alemã não era apenas aquela dos soldados nazistas que povoavam os filmes de televisão nos anos 60 e que nunca era traduzida – procedimento que os americanos repetem mudando de inimigo: os índios, os vietcongs, os árabes –, mas também a língua da poesia e da filosofia.
A ópera, o afeto latino, a cidade que resiste
O acaso nos prega peças, pode nos atingir como um dom, e foi assim que encontrei em um banco onde abri uma conta, aqui nessa cidade de bancos, um chileno, Simon Iturra Fuentes. Logo, iniciamos uma conversa que ia além dos interesses de um funcionário por um cliente; falamos de música e ele me contou que seu pai trabalhava na Ópera de Frankfurt. Dias depois, me convida para ir à casa de sua família, em Darmstadt, a cerca de 50 minutos daqui. Peguei a U Bahn até Hauptwache e de lá o S Bahn 3 até a Hauptbahnhof de Darmstadt onde me esperava um Simon sem terno e gravata, um jovem com feições fortemente latinas, sorridente, que, depois, descobri que era o mais velho (22 anos) dos quatro filhos do casal Ricardo Iturra e Gimena Fuentes. Uma noite mágica: a primeira noite de amizade e afeto na Alemanha, com os latinos, cantando, o violão trocando de mão; lá fora, a lua cheia. Dias depois, recebo outro convite de Simon: “Papá te espera a las 14h30 afuera de la ópera”. Já era 1h30min, troquei de roupa e peguei a U Bahn até a Willy Brandt Platz onde encontrei Ricardo. O convite era para assistir ao ensaio geral de Parsifal, a última ópera que Wagner escreveu, cuja estreia aconteceu em Bayreuth em 1882, seis meses antes da morte do polêmico ex-amigo de Nietzsche. Na cantina, Ricardo me apresenta aos colegas do coro, um romeno, uma russa e também a um brasileiro de Vitória, Roberto, e a Frank van Aken, o holandês que faz o Parsifal; no palco, en passant, cumprimentamos o maestro e diretor geral Bertrand de Billy que, ao ouvir que eu era brasileiro, diz sorridente: Encantado. Nietzsche, claro, odiou a ópera cheia de simbolismo cristão, mas eu segui encantado a engrenagem daquela Gesamtkunstwerk decadente levada por um monte de estrangeiros e regida por um francês.
No avião para Marseille, onde mais uma vez iria encontrar minha filha Clara, leio, um dia antes das manifestações do Blockupy em Frankfurt por ocasião da inauguração do prédio do Banco Central Europeu (18 de março), um artigo de opinião no Frankfurter Rundschau, assinado por Michael Herl, jornalista, documentarista, dramaturgo, intitulado Unser Monstrum (Nosso Monstro), que iria ainda aumentar minha simpatia em relação a essa cidade sóbria: “Na verdade, não há muitas razões para se ter orgulho de Frankfurt. Não há nenhum mar, nenhuma montanha, nenhuma torre Eiffel, nenhum lugar onde uma vez estiveram duas torres. No futebol, o time da cidade ganhou o campeonato pela única e última vez já faz uns 50 anos e em termos de culinária reina uma tal pobreza que somos obrigados a festejar como especialidades uma fria Kräuterpampe, um azedo Apfelbrühe e um grudento Stinkekäse”. Em compensação, lembra Herl, Frankfurt é a cidade mais internacional da Alemanha desde a Idade Média. Sua gente gosta de uma conversa e tem, em geral, uma posição crítica quando a situação exige. “Por isso”, diz ele, “durou um certo tempo até que a rejeição aos arranha-céus monstruosos de aparência americana se transformasse em um orgulho secretamente cultivado pelo skyline”. A antipatia pela ostentação do novo prédio do Banco Central Europeu – os 41 andares, projeto do arquiteto Wolf Dieter Prix, custaram 1,2 bilhão de euros – vinha desde a destruição de todo um quarteirão do Ostend e a inauguração do enorme edifício fez com que aparecesse a contraface do consenso liberal: a manifestação pacífica no Römer e a explosão da violência em volta do novo arranha-céu. “Liebe EZB”, terminava Herl seu artigo do FR, “so geht das nicht” (Querido Banco Central, assim não dá). Se vocês querem ser bem recebidos em Frankfurt, têm muito que aprender”. Essa mesma disposição crítica fez com que o líder do Pegida, Lutz Bachmann, de Dresden, cancelasse as passeatas xenófobas na cidade e desautorizasse o uso da marca ridícula e racista, patriotas europeus contra a islamização do ocidente, por uma minoria que agora desfila sua intolerância sob o nome de Freie Bürger für Deutschland – em uma segunda-feira linda de final de tarde de primavera, dei de cara com a manifestação desse grupo no Römer: cerca de 40 pessoas, cercadas por 200 policiais e grades de ferro contra umas 500 pessoas que vaiavam e faziam soar seus apitos a cada vez que a líder do Freie Bürger für Deutschland, Heidi Mund, uma pedagoga (pode?), tentava falar. Assim eu descobri que a cidade dos bancos era também a cidade dos que querem um mundo diferente e comecei a me sentir em casa, heimisch, acolhido com afeto por chilenos acolhidos com afeto por francos que habitam esse baixio do Meno que quer ser alguma coisa mais do que sede de instituições financeiras.
(Actualización mayo - junio 2015/ BazarAmericano)