diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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“Hablo mucho con mi madre y
me doy cuenta que el folletín
familiar que me relata está escrito
dentro de las reglas del género: por entregas”
Osvaldo Lamborghini
José Gonçalves, anos 20
Desde o dia primeiro, estou aqui em Frankfurt am Main para uma estadia de seis meses, dando mais uma volta nesse círculo que me liga à língua alemã desde menino, a princípio como um interesse fortuito que, na adolescência, foi reforçado com a paixão pela música de Bach, de Beethoven, de Mozart. Vim para fazer a revisão de uma tradução começada em 2010 da Filosofia do Dinheiro, de Georg Simmel, livro publicado em 1900, mesmo ano da Traumdeutung, de Freud, e da morte de Nietzsche. Ainda sem ideia da língua, tentava inutilmente nesses primeiros contatos seguir as letras das cantatas de Bach, correndo pelos versos sem atentar para o fato de que, na maioria das vezes, o cantor ainda estava na primeira linha, repetindo escala acima, escala abaixo, as mesmas palavras de uma liturgia cristã que eu, rapazinho radical, desgostava profundamente – vale lembrar que ainda desgosto, embora a música sacra de Bach e de Mozart continue me comovendo incrivelmente. Ainda na adolescência, Haydée começou a me contar as histórias de meu avô, José Gonçalves, a quem eu não conheci pois morreu tragicamente, se suicidou, no final dos anos 40. As histórias que ela me contava construíram a imagem de um homem esclarecido; era médico, amante da música, dono de uma linda voz e germanófilo. Leitor de Nietzsche, apaixonado pelas óperas de Wagner, frequentava antes da guerra o Bar Luiz, na rua da Carioca, centro do Rio, que então se chamava Bar Adolf até ser invadido, em 1940, depois do torpedeamento de navios brasileiros na costa por submarinos alemães, por estudantes do Colégio Pedro II que queriam destruir o lugar imaginando que o nome era uma homenagem a Hitler. Adolf, no entanto, era um dos sócios do bar que acabou sendo salvo da destruição por Ary Barroso que apreciava o chope e a salada de batatas do lugar, assim como meu avô José, e que explicou aos jovens que nem todo Adolf era Hitler. Uma dessas histórias que Haydée me contava do folhetim familiar me encantou particularmente: José era estudante de medicina nos anos 20 e tinha se mudado para o centro do Rio, para uma pensão, onde morava com um primo, Leonardo. Sem grana, os dois costumavam subir no telhado do Teatro Lírico para ver e ouvir as óperas. O Teatro Lírico, demolido em 1933, tinha sido inaugurado em 1871, na rua da Guarda Velha, nº 7, hoje, rua Treze de Maio, com um baile de carnaval, e sua origem era o Circo Olímpico, montado no lugar em 1857, por Bartolomeu Correia da Silva – vale ressaltar a origem circense de um teatro que misturava o alto e o baixo. Ali, nesses anos do modernismo, José assistia às óperas e também, certamente, aos espetáculos de revistas com suas coristas “quase nuas”. A imagem de meu avô no telhado do teatro parecia uma antevisão de minha relação de adolescente com o Teatro Municipal do Rio, essa pequena cópia da Opera de Paris que na virada do século XIX para o XX compunha o cenário francês que o prefeito Pereira Passos fazia construir sobre a cidade portuguesa apertada e entulhada, de que a rua da Carioca era uma pequena parte. Anos depois, sobre a cidade francesa, viria a americana com seus prédios de concreto e vidro que hoje dominam a Avenida Rio Branco, antiga Avenida Central. Gosto de pensar que minha formação é como o Rio, uma mistura da cidade engruvinhada portuguesa, com a afetação neoclássica francesa e a metrópole pop americana.
Pois bem, o folhetim familiar me fazia ser uma espécie de reencarnação desse avô e por aí também teria vindo a relação com a língua alemã. Meu avô, sempre segundo o mesmo relato materno, tinha um amigo alemão, um marujo que abandonou o navio durante a guerra quando esse aportou no Rio e com quem treinava seu Hochdeutsche. Nossa família, que nos anos 60 morava no Leblon, na Afrânio de Melo Franco, rua que atravessava o bairro desde a praia até a favela – chamada de Praia do Pinto – que alcançava com suas casas de madeira a Lagoa Rodrigo de Freitas, também tinha uns amigos alemães: os Behrens, cujos filhos, Ronald, Thomas Carl e Veronika foram nossos companheiros durante alguns anos – Ronnie havia estudado com meu irmão no curso de admissão que se fazia na época para disputar uma vaga no ginásio. Na casa deles, ouvia, à mesa, o alemão utilizado em todas as situações formais (licença para sair da mesa, coisas do gênero). O pai deles, assim como o amigo de meu avô, também havia deixado um navio alemão para se estabelecer no Brasil. Além dos Behrens, já no final dos anos 70, início dos 80, iria aparecer mais uma relação com a língua alemã. Conheci Gerda Schott, que depois seria madrinha de minha filha Clara – nome que me veio da mulher de Schumann –, quando ela ainda morava em Ipanema, na vila ao lado do então famoso restaurante Natural. Pouco depois, ela iria se transferir para Santa Teresa onde eu também iria morar, dividindo com ela e com outra gaúcha descendente de alemães, uma casa antiga na rua Hermenegildo de Barros cujo jardim dava para a enseada de Botafogo. Aí, já estudando alemão por minha conta, iria sempre que possível praticar um pouco da língua com Gerda e Ana.
Eu nunca tinha passado uma temporada maior na Alemanha, apenas uns poucos dias em Bad Urach, na Suábia, e em Munique nos anos 80. Desse primeiro contato, lembro de como riam de meu alemão com sotaque suíço já que eu vinha de uma estadia de quase um ano em Luzern, cidade à beira do Vierwaldstättersee (Lago dos Quatro Cantões), onde Wagner havia se casado com Cosima Liszt e recebia as visitas de um jovem professor alemão de Berna, Friedrich Nietzsche – desde 1933 a casa onde os Wagner moraram por seis anos (de 1866 a 1872) antes de se transferirem para Bayreuth é um museu dedicado ao compositor. De modo que essa estadia aqui parece fechar um ciclo que começa, talvez, com meu avô José. Frankfurt, ou o Baixio dos Francos (Vadum Francorum) foi escolhida em função do trabalho: na Goethe Universität posso contar com a ajuda de um leitor experiente de Simmel. Da universidade, que ainda conheço pouco, destaco, repetindo o relato simpático do professor Lichtblau, o edifício Poelzig, nome do arquiteto e professor que o projetou em 1928 para ser a sede da empresa química IG Farben (Interessen Gemeinschaft Farbenindustrie Aktiengesellschaft). Esse enorme conglomerado havia comprado a propriedade que antes pertencia à família Rothschild e onde estava instalado um hospital psiquiátrico no qual trabalhava Alois Alzheimer. O professor Lichtblau me chamou a atenção para o caráter grandioso – fascista foi a palavra que ele usou – do enorme prédio que contrastava com o desenho modernista dos outros prédios da universidade e também me contou que foi a IG Farben que fabricou o gás que matou tantos judeus nos campos de concentração. Depois da guerra, o prédio serviu de Quartel General das tropas americanas sendo renomeado Creighton W. Adams Building, em 1975; quando os americanos finalmente deixaram a Alemanha em 1995, foi comprado pelo estado de Hesse para a universidade.
Frankfurt Römer, ph: Max Göllner, 1945.
A cidade, em uma primeira impressão, não é especialmente bela, nem especialmente feia. Tem aquela sobriedade característica de um centro financeiro e parece adequada a quem está traduzindo um livro sobre o dinheiro. Disso advém, a princípio, uma vantagem: as hordas de turistas passam pouco por aqui, o que não é pouco para quem vive em uma cidade como Florianópolis que, em janeiro, se torna uma sucursal do inferno. O rio Meno (Main) faz com que a cidade moderna – foi quase totalmente destruída no final da guerra – respire, abrindo para nós um horizonte mais ameno.
Os jornais da televisão repetem aqui incansavelmente meia dúzia de temas sendo os principais: a guerra na Ucrânia e os esforços diplomáticos da chanceler Angela Merkel em busca de uma solução, o conflito do novo governo grego chefiado por Alexis Tsipras contra a Troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional) e os movimentos racistas e xenófobos que começaram a aparecer em Leipzig com o nome de Pegida (patriotas europeus contra a islamização do ocidente) e se espalharam pela Alemanha – em Frankfurt se chama Fragida. Minhas primeiras leituras aqui na Alemanha estão diretamente ligadas a esses dois últimos temas: Faule Kredite, Ein Fall für Kostas Charitos (Créditos Podres, um caso para Kostas Xáritos), de Petros Markaris, e Soumission, de Michel Houellebecq. Li a primeira vez as histórias do comissário Kostas Xáritos, da polícia de Atenas, em Roma e fiquei fisgado pela escrita desse grego nascido em Istambul que escreveu alguns dos roteiros dos filmes de Theo Angelopoulos e traduziu, entre outros, Goethe e Brecht. Reencontro-o aqui numa livraria meia boca de uma loja de departamentos, em promoção, e não resisto: andei com ele pra cima e pra baixo, acompanhando as tentativas do comissário de resolver as mortes de banqueiros por decapitação em uma Atenas paralisada pelos protestos contra os acordos com a União Europeia. O livro, de 2010, traça o clima em que a Grécia vive com a redução de salários, demissões, suicídios e as manifestações que fazem do trânsito de Atenas, personagem habitual nas histórias de Markaris, um inferno maior do que já era anteriormente. A epígrafe é a famosa frase do terceiro ato da Ópera dos três vinténs, de Brecht: o que é o roubo de um banco comparado à fundação de um banco?
Em Soumission (Submissão), reencontro o pessimismo decadente e o cinismo amargo de Houellebecq em uma história cujo personagem principal é um professor universitário, de Letras, especialista em Huysmans, vivendo em uma França que, dividida entre o Front National e a Fraternidade Muçulmana acaba elegendo, em 2022, com o apoio da esquerda, um presidente muçulmano. Mas ao invés de isso soar como uma catástrofe, o narrador, nosso professor de Letras, vai nos dando conta da recuperação do país e de uma nova fase de prosperidade cujo horizonte é a construção de uma potência islâmica mediterrânea moderada nos moldes do império romano. Não resisto à tentação de traduzir algumas de suas boutades. Sobre o amor: “Para os homens, o amor é somente o reconhecimento pelo prazer concedido”; sobre a política: “É verdade que na minha juventude as eleições eram tão pouco interessantes quanto possível; a mediocridade da ‘oferta política’ tinha mesmo algo de surpreendente. Um candidato de centro-esquerda era eleito, por um ou dois mandatos, de acordo com seu carisma individual, e razões obscuras o impediam de terminar um terceiro; a população então abandonava esse candidato e de modo geral o partido de centro-esquerda, acontecia então um fenômeno de alternância democrática e os eleitores levavam ao poder um candidato de centro-direita, também por um ou dois mandatos, seguindo sua natureza. Curiosamente, os países ocidentais estavam extremamente satisfeitos com esse sistema eleitoral que não era, no entanto, nada além da divisão de poder entre duas gangues rivais, e chegavam até mesmo a provocar guerras a fim de impor esse sistema aos países que não partilhavam de seu entusiasmo”. E, finalmente, em um diálogo entre o presidente das universidades, Robert Rediger, um belga convertido ao Islam, e o narrador, a razão do título do livro que, surpreendentemente, vem de um elogio a Histoire d’O: “É um livro fascinante, você não acha? (...) É a submissão, diz docemente Rediger. A ideia desconcertante e simples, jamais expressa antes com essa força, de que o auge da felicidade humana reside na submissão mais absoluta”. Vale lembrar que submissão é a tradução da palavra árabe Islam mas que o alvo do livro é a decadência e a morte lenta da Europa, tema habitual de Houellebecq.
(Actualización marzo - abril 2015/ BazarAmericano)