diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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Ainda no século passado, precisamente no dia 19 de agosto de 1998, o crítico Roberto Schwarz lembrou que o livro Verdade tropical, de Caetano Veloso (1997), foi escrito sob encomenda de um editor americano, o que não o impediria de assegurar, na mesma fala, que se tratava de “um livro por muitos lados muito impressionante”. Schwarz, no entanto, iria mais longe: “Eu comecei a ler o livro e de repente eu disse: mas eu conheço esse ritmo de algum lugar, esse jeito de expor. E me dei conta, é o começo das Memórias póstumas de Brás Cubas”. Por isso, chama muito a atenção que agora, passados catorze anos, quando Schwarz acaba de publicar seu novo livro de “ensaios e entrevistas”, intitulado Martinha versus Lucrécia (Ed. Companhia das Letras), o paralelo com Machado de Assis tenha sido completamente excluído da análise de “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”. O que não ocorre, diga-se de passagem, com o ensaio breve dedicado ao último romance de Chico Buarque, Leite derramado, cabendo perfeitamente nos moldes do intelectual adorniano da Universidade de São Paulo: crítica social feita indiretamente pela “autoexposição ‘involuntária’ de um figurão”. Já no largo ensaio sobre o livro de Caetano Veloso, visto como “autobiografia quase romance”, o paralelo é (refletidamente?, estrategicamente?) abandonado em troca do Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira, do Observador no escritório, de Drummond, das memórias de Oswald de Andrade e de Pedro Nava. Também o entende “um pouco à maneira substanciosa e flexível de Gilberto Freyre”, trocando-se a elegância irônica típica de Machado de Assis pelo gosto da controvérsia e da provocação, que Caetano e os tropicalistas extraem com sede da veia antropofágica oswaldiana.
A fala de 1998 era parte de um debate sobre estudos culturais com Beatriz Sarlo e o próprio Schwarz como protagonistas, no auditório da Reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis (1), durante a realização de um congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada. Catorze anos depois, o antigo affair Roberto Schwarz-Caetano Veloso –iniciado em 1970 com o ensaio “Cultura e política, 1964-1969”, publicado em Les Temps Modernes e incluído em O pai de família e outros estudos (1978), em que o crítico definiu o tropicalismo como uma aberração conformista em que se unem o arcaico e o ultramoderno– volta à tona, com a publicação do novo volume de ensaios e entrevistas. Antes mesmo da distribuição do livro (e, vale frisar, como parte de sua estratégia de marketing), Caetano Veloso teve acesso ao ensaio e foi convidado a responder a uma série de questionamentos em entrevista por e-mail reproduzida na Folha de São Paulo de 15 de abril de 2012. A segunda pergunta da entrevista quer saber “por que Schwarz só publica o ensaio quinze anos depois do seu livro”. Resposta de Caetano: “Não sei. Talvez ele o tenha lido com grande atraso (não quinze anos de atraso, é claro) e demorado muito para decidir-se a discuti-lo publicamente. Talvez ele tenha tardado também em metabolizar o que leu”.
A metabolização da leitura pode ter durado uma década, mas no ano seguinte à publicação do livro, como se viu, o crítico já a fizera pública, em um “centro do saber” situado na periferia da América do Sul, nos termos mencionados acima. Daquela intervenção inicial de Roberto Schwarz, em um congresso em que se pode dizer que era o grande peixe fora d’água (a um tempo marxista e cardosista), quedaram apenas os chamativos elogios –que se repetem no ensaio recente, junto com as admoestações ideológicas de praxe (“as repetições da esquerda uspiana”, como escreve Caetano na entrevista). Desaparecidas as alusões ao “mestre na periferia do capitalismo” (como reza o título de uma de suas obras dedicadas ao escritor), restam apenas alusões às primeiras páginas “muito estranhas e cheias de fintas” de Verdade tropical (como as de Brás Cubas), em que se destaca “o mal-estar como recurso literário”, na elaboração de Caetano sobre o “país do futuro” como “nação falhada” às vésperas do ano 2000. Registre-se que aquilo que soa negativo para Roberto Schwarz (tanto na década de 70 como no século XXI), já soava positivo aos olhos e ouvidos de Silviano Santiago, seu contemporâneo, em 1972. Em “Caetano Veloso enquanto superastro” (incluído em Uma literatura nos trópicos, 1978), Santiago elogiava seu retorno ao Brasil, depois do exílio londrino, quando palco e vida apresentaram-se como parte de um só espetáculo: o astro “é deus, é pessoa: é superior, é diferente, é semelhante. Tudo ao mesmo tempo”. Do ponto de vista dialético de Schwarz, desaparece no relato carnavalesco do retorno do exílio acima de tudo “o jogo dos conflitos e das alianças de classe que subjazem à invenção estética e à consagração artística, sem o qual a beleza não se compreende socialmente”. Dialeticamente, o crítico paulista (nascido na Áustria em 1938) acrescenta: “Dito isso, o livro seria menos representativo se faltassem esses parágrafos”. Dito isso, replico, o ensaio de Schwarz seria menos representativo do ensaísmo de Schwarz sem semelhante concepção pré-moderna (para dizer o mínimo) de “beleza”.
Coloco estas duas perspectivas em paralelo também porque o exemplo de que ambos se utilizam é –apesar das quatro décadas que os separam– o mesmo. Trata-se, mais precisamente, da mesma canção, “Aquele abraço”, de Gilberto Gil. “Desde 1967”, escreve Santiago, “Caetano já estava preocupado com um novo tipo de personalidade, de aparência, que precisava criar para poder enfrentar a TV e o disco”. Note-se que, na entrevista recente, Caetano Veloso observa que “na altura do tropicalismo [ou seja, 1967-68] deu-se uma virada em mim, e também em Gil, pelo menos, que exigia repensar tudo por conta própria, desfazendo adesões automáticas. O maior inimigo era esse automatismo”. Quer dizer, vai aí uma crítica à adesão automática dos intelectuais a uma esquerda não menos autoritária que a direita. Para Santiago, em 1972, “os tropicalistas buscavam em Chacrinha [o anárquico animador de auditório], num primeiro e definitivo gesto de desautomatização cultural [grifo meu], o elemento que poderia criar uma atmosfera ideal e proliferante de não-seriedade, de descompromisso com as forças da intelectualidade oficial brasileira”. Para Schwarz, ainda hoje, no entanto, esse gesto –como seria de esperar– está ligado ao grotesco visto negativamente, à regressão, à irresponsabilidade social, ao autoritarismo e ao absurdo representados pela Tropicália. “Comentado o acerto da canção [“Aquele abraço”] com que Gil se despedia do Brasil”, escreve Schwarz, “depois da prisão e antes do exílio, ‘sem sombra de rancor’, ‘amor e perdão impondo-se sobre a mágoa’, Caetano louva a sua sabedoria”. Completado o relato em Verdade tropical com a volta ao Brasil no auge da ditadura, o crítico paulista o desqualifica como melodramático, apelativo e, pior, regressivo porque “maravilhoso” e maravilhoso porque “regressivo”: “Como num conto de fadas ou numa alegoria carnavalesca, a chuva, os bichinhos alados e o povo da Bahia se unem para dar boas-vindas, em nome do Brasil ao artista que fora rejeitado e agora voltava. O apelo ao maravilhoso é compreensível como expressão de desejo, embora kitsch. Como explicação do curso das coisas, é regressivo, uma verdadeira abdicação”. Diante disto, Caetano Veloso parte para o ataque na entrevista: “A prisão me pôs mais profundamente em inimizade com o projeto dos militares de direita que tomaram o Brasil. A descrição dos solavancos por que passamos não poderia ser desinfetada para agradar aos revolucionários de gabinete. (...) Foi sob a ditadura, sobretudo na prisão, que aprendi a odiar o odiável em nossa sociedade”.
Como assinala Roberto Schwarz, em “Alegria, alegria”, o primeiro grande êxito musical de Caetano, colocava-se lado a lado Chacrinha e Jean-Paul Sartre. Para o crítico paulista, preocupado com o “senso das proporções” pela via da análise dialética de “um percurso de nosso tempo”, “o ídolo dos intelectuais” posto em relação com “o ídolo das empregadas domésticas” (conforme expressões do crítico) não poderia ser levado a sério: “O gosto duvidoso que a brincadeira deixa na boca é um sabor do nosso tempo”. Concluo, portanto, com uma observação relativa a uma marca do estilo ou “cacoete” de Schwarz, para novamente empregar um termo seu. Enquanto o cacoete apontado em Caetano seria o de transformar divas em deusas –“sem ironia” nesse ponto, obriga-se a destacar o crítico–, o cacoete fundamental de Schwarz, aliado à vistosa sofisticação adorniana contra o “marxismo vulgar”, seria justamente o do uso e abuso da famosa ironia machadiana em suas leituras do mundo –como o revelam, entre inumeráveis exemplos possíveis, o “movimento peculiar da bunda” das classes dominantes no ensaio de 1970, a mesma referência às empregadas domésticas no de 2011, assim como a relação abandonada do início de Memórias póstumas de Brás Cubas com o de Verdade tropical, feita em 1998, em que se aludia a um “joguinho” compartilhado pelos dois escritores com a finalidade de “criar uma espécie de contexto geral de falta de seriedade”. A frase de Schwarz a respeito da brincadeira de gosto duvidoso de Caetano Veloso faria, diante disso, um movimento de bumerangue.
(1) Para o bem e o mal, a coluna “Jornal do Brasil” tem como base a antiga Ilha do Desterro, hoje Ilha de Santa Catarina, como já perceberam os seus eventuais leitores. Perspectiva ao mesmo tempo local (antes alongada que estreita, espera-se, como a própria geografia da ilha) e transnacional.
(Actualización mayo-junio 2012/ BazarAmericano)