diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Jornal do Brasil
Três dias na vida de Eduardo Coutinho
(21/ 10/ 2011; 28/ 10/ 2010; 1/ 10/ 2009)

"Se uma análise científica da bobagem fosse possível,
toda a TV desmoronaria."                                                                                                                  
Roland Barthes por Roland Barthes

Aconteceu no Desterro. O cineasta Eduardo Coutinho (São Paulo, 1933) – autor do clássico Cabra marcado pra morrer (1984) – veio a Florianópolis pela primeira vez, no dia 21 de outubro último, para o encerramento da 5ª Semana de Cinema na Universidade Federal de Santa Catarina. No programa a exibição de seu filme-experimento sem título dedicado à televisão, feito com o cineasta João Moreira Salles, com quem deveria comentá-lo na sequência. “Por problemas técnicos”, de acordo com a organização do evento, a cargo dos alunos do curso de Cinema, não seria possível exibi-lo; em câmbio, foi apresentado o último filme de Coutinho, As canções (2011). Depois dos noventa minutos de projeção, ele ocupou o palco ladeado pela também cineasta Cláudia Mesquita, que tinha a tarefa de entrevistá-lo, sendo que o seu parceiro e produtor, aparentemente contrariado, quedou-se mudo na platéia. Sem responder à primeira pergunta a respeito do filme recém-exibido, começa a fala em tom agressivo manifestando sua contrariedade em relação à mudança de programação (os “problemas técnicos” teriam sido devidos a um erro de manipulação dos arquivos pela secretária do cineasta no Rio de Janeiro). Com a voz gutural de fumante inveterado e o microfone excessivamente afastado da boca (o que fez alguns deixarem a sala), diz algo como: “Nós fomos convidados pra vir do Rio de Janeiro a Florianópolis – que afinal de contas nem é tão longe – pra falar sobre o nosso experimento com a televisão e chega na hora passa esse filme sentimental”. Nada de novo: todas as falas de Coutinho começam por algum tipo de circunlóquio em torno do “não”.

A partir daí, abandona o “filme sentimental” (o qual só retomaria em função dos comentários do público) e começa a falar do filme que não chama de filme e que não foi exibido, entre um cigarro e outro. A propósito, Coutinho fumou à vontade no auditório Henrique Fontes, no campus da universidade – ao contrário de Catherine Deneuve, que não pôde fumar em paz recentemente em São Paulo. Mesmo porque, caso não pudesse fazê-lo, sequer teria aceitado o convite para vir ao Desterro, já que não lograria falar: em seu caso, hoje bastante raro, o tabaco e a emissão da voz estão inextricavelmente associados. Assim, a partir das pistas deixadas ao longo do monólogo que se seguiu ao protesto inicial, é preciso fazer um exercício de imaginação, com o apoio decisivo de uma testemunha ocular, o crítico Eduardo Valente (revista Cinética) e sua leitura aguda* daquela que seria a primeira exibição pública do “não-filme”, com o título provisório de Um dia na vida, precisamente no dia 28 de outubro de 2010.

A produção de Eduardo Coutinho no terreno movediço do cinema documental definiu-se, nas duas últimas décadas, em torno do procedimento da entrevista e da câmera fixa, na altura dos olhos do interlocutor, como marcas de uma intervenção pessoalíssima que se deve tanto a razões estéticas (um modo distinto de ver, falar, ouvir e fazer) quanto práticas (custos baixos que garantem independência). Por outro lado, como reconhece o diretor, a disseminação de seu cinema tornou-se fatalmente mais restrita ao âmbito do país, em função de se basear em falas em português brasileiro que resistem à tradução. A estas vozes é dada uma certa corda, mediante a capacidade “mediúnica” que parece ter a língua a um tempo afiada e afável do cineasta. Falando claramente: o velho bruxo, o “papa do documentário de mim mesmo” é capaz de arrancar misérias dos corações latidores do lado de baixo do Equador. É um cinema da veia e da verve melodramática brasileira, basicamente em sua porção norte: exploram-se os espaços ocupados por portugueses, negros e índios, e não os do sul, de maioria branquela e européia. Desde Cabra marcado pra morrer, iniciado em 1962, interrompido em 1964 e finalmente concluído em 1984, para Coutinho, o centro do mundo fica na Paraíba ou em Pernambuco. É o que chama de “lugar feliz”, equivalente ao próprio lugar da fala.

A voz de Coutinho bem poderia pertencer à escola de um João Gilberto, no sentido de que fala-canta baixinho e de modo sedutor, mas, enquanto a voz do sambista foi amaciada pela cannabis, a de Coutinho o foi pelo tabaco, tornando-se gutural e rascante (“insuportável”, segundo o próprio). Quanto ao que enuncia nas entrevistas, faz muitas vezes com que as chamadas perguntas bobas e a interlocução mais corriqueira gerem comentários totalmente inesperados, frutos desse encontro exclusivo, provocado estrategicamente dessa forma: câmera fixa nos olhos do interlocutor. E, no entanto, o corpo que fala parece amolecer rapidamente diante da mera presença do “velho”, e isto também segundo ele mesmo: “Me ouvem porque sou velho”, diria na visita ao Desterro. De sua parte, além de ouvir sem julgar, trata-se de editar essas vozes selecionadas laboriosamente e, somente a partir dessa etapa de intervenção sobre o material existente, é que se define um roteiro. É conhecida a ojeriza de Coutinho à transcrição de entrevistas faladas, do mesmo modo que gosta de afirmar que não escreve mais (dados do livro de entrevistas publicado com seu nome em 2008 pela Beco do Azougue Editorial, e que evidentemente ele hesitou em publicar).

     De tal modo que, ao intervir pessoalmente, ainda que em voz baixa, com freqüência inaudível, em seus filmes, é impossível separá-lo de sua própria dimensão autoral no sentido físico, corporal, ainda que o autor-entrevistador em questão se caracterize pela austeridade estética e pela teoria e prática da dessubjetivação: “Que importa quem entrevista?”, ele poderia dizer, sendo a questão da autor-idade uma das questões centrais (ao lado daquelas do consumo e da crença) colocadas em Um dia na vida, que segundo o autor, como se viu, não teria título nem autoria e sequer mereceria ser considerado um filme. O subtítulo anunciado na Mostra de São Paulo igualmente apontava para essa via: “Material de pesquisa para um filme futuro”. A estratégia do silêncio relativo se deve, no entanto e em boa parte, a um cuidado com a lei dos copy rights por causa das imagens reproduzidas da televisão. Sem levantar a bandeira do copy left (nem nenhuma bandeira), se trata com efeito de trabalho deliberadamente clandestino, fadado a ser mais marginal que o próprio cinema documental, sempre restrito a determinado público, como costuma afirmar o cineasta. Público que, no entanto, atingiu cerca de cem mil pessoas no ano de lançamento de Edifício Master (2002), em que vinte e seis moradores do prédio homônimo, a duas quadras do mar de Copacabana, contam histórias de suas vidas isoladas nos pequenos caixotes do enorme edifício. Filmado em fase “limpa” e controlada por câmeras de segurança, após um passado de tráfico de drogas e de prostituição, o Edifício Master de Coutinho põe na superfície da tela, de maneira incômoda, o destino solitário das pessoas que se concentram sem se conhecer em um grande condomínio de uma grande cidade brasileira, mundialmente conhecida por atributos de outra ordem. Um dia na vida de cada um deles, com seu drama e sua canção preferida: um vale de lágrimas distinto e igual a qualquer outro.

Desses corpos falantes que compõem a sua já extensa galeria de personagens, Coutinho, através da interposição silenciosa de seu próprio corpo e de sua voz, extrai a fala no momento exato de sua enunciação, sem nunca ter tido contato antes com o entrevistado e sempre em longos planos, opondo-se à lógica do filme publicitário, do telejornalismo e do clipe musical. “Cinema de conversação”, como já sugeriu o diretor, que em seu último avatar realiza o antigo projeto de filmar pessoas cantando e contando a história da música de suas vidas. O projeto do filme foi disparado por meio de uma singela placa, exposta em diferentes lugares do Rio de Janeiro, com os dizeres: “Alguma música já marcou a sua vida? Cante e conte sua história!”. O mesmo procedimento foi utilizado em Jogo de cena (2007), talvez o melhor laboratório de seu modus operandi, ao misturar documento e ficção através das vozes de atrizes e não-atrizes narrando as mesmas histórias, cuja matriz – como em Edifício Master, como em As canções – é o melodrama. Gênero, por sinal, tão presente nesses filmes como, sob uma lógica diametralmente oposta, na televisão brasileira de todos os dias, há pelo menos quarenta anos, onde impera o slogan “consumir é viver”. Coutinho sugeriria uma variante dele em sua fala no Desterro, a qual atribuiria a García Canclini: “consumir é pra pensar”...

Quanto ao não-filme que (quase) ninguém viu, o cineasta preferiu denominar, segundo Valente, com os qualificativos de “coisa” ou “troço” na (suposta) única exibição realizada durante a Mostra de Cinema de São Paulo, há pouco mais de um ano. O experimento sem nome e sem créditos foi batizado Um dia na vida a pedido da organização da Mostra. O título, no entanto, é significativo na medida em que remete ao cotidiano de milhões de pessoas Brasil e mundo afora. Mas se trata especificamente da televisão brasileira, velha ocupação e preocupação de Coutinho, cuja opção estética se definiu em grande parte pela experiência de filmes e reportagens especiais realizados para um dos programas televisivos mais tradicionais da Rede Globo durante quase dez anos, o Globo Repórter – que reconhece como sua “escola”, tendo resultado, antes de mais nada, em um manual de “como-não-fazer”. O não-filme, por sua vez, é resultado de dezenove horas de filmagens ininterruptas de emissões de diferentes canais da televisão comercial do país, de programas femininos e infantis a jornalísticos e religiosos, precisamente “no dia 1º de outubro de 2009, efetuando ao vivo a troca de canais”, conforme o relato do crítico da revista Cinética. Sendo ele próprio o anti-entrevistador por excelência, se pensarmos na prática diária do telejornalismo no país, o cineasta se revelaria um mestre da entrevista no sentido de conversa à toa e ao vivo, sem transcrições nem interrupções ou correções (até onde isto é possível). É a esta prática – de que o telejornalismo-espetáculo é o espelho e o sintoma – que Eduardo Coutinho dedica o experimento fílmico não visto, cujo gesto político, ao ver desde outra perspectiva o mundo simultaneamente cor-de-rosa, sangrento e ruidoso da tevê, consiste em levar a programação de fluxo diário incessante, que molda o cotidiano do país-continente, a uma sala de cinema. O que não aconteceu no Desterro.



* Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/umdianavida.htm

(Actualización noviembre-diciembre 2011; enero-febrero 2012/ BazarAmericano)




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ISSN 2314-1646