diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Diário de Viagem
Um tradutor no Baixio dos Francos Inverno em Francoforte do Meno, 2019/20, Verão na Ilha (Ano I/II da Miséria Nacional)

Leite-breu d´aurora nós o bebemos à tarde
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos à noite
bebemos e bebemos


Fuga sobre a morte (Paul Celan)
(trad. Cláudia Cavalcanti)

 

Atrás dele, na beira, estava uma jovem
garça, brilhante, de um cinza azulado de
hortelã fresca, como um pedacinho de céu
caído do firmamento e elegantemente
atado à margem do lago.

 

Pondlife, Al Alvarez

 

Ok Ok Ok

Gil

 

Uma valsa pra Francis Se ela perguntar foi gravada em 1958 por Dilermando Reis. É uma valsa em Mi menor, muito expressiva que ouvi à primeira vez em um disco pesado de 33 rpm nos anos 60 – emprestado pela tia Irma, casada com Hélio, um dos filhos do irmão mais velho de meu avô José, Mário. Há uma versão cantada com letra de Jair Amorim, gravada em 1962, por Francisco Petrônio, voz, e Dilermando no violão. Dilermando nasceu em 1916 em Guaratinguetá (SP), cidade em que morei de 1958 a 1960 – a única lembrança é uma ladeira que havia na frente de casa –, e de onde veio Francisca Gonçalves Dias que com sobrenome de poeta foi minha segunda mãe. Saravá!

 

*

Friedberger Anlage – Alguém nos contou que no bunker construído sobre a sinagoga que os nazistas incendiaram em novembro de 1938, no Ostend, havia uma exposição guiada que contava a história do bairro e seus moradores judeus. Eu havia observado as placas douradas no chão (Stolpersteine), na calçada, com o nome, data do nascimento e de morte, sempre em algum campo de concentração, em um dos caminhos que fazia para chegar ao rio Meno, descendo pela Röderweg até a praça Danzig e daí, pela vereda lateral do imenso e arrogante prédio do banco central europeu até o rio. Em meio a interessante e competente narrativa da guia, uma jovem grávida, sobre a vida no bairro Ostend nos primeiros decênios do século XX, comecei a passar mal e tive que sair rápido daquele ambiente claustrofóbico. O bunker foi usado pela população nos anos de bombardeio aliado, uma enorme caixa de cimento sobre a linda sinagoga construída em 1907 pela comunidade israelita de Francoforte do Meno. wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng.

 

*

Dois amigos de viola – Toda quarta-feira, vou a Langen tocar com Emílio, farmacêutico (Apotheke am Bahnhof) chileno que conheci na casa de Ricardo Iturra em 2015, e Andreas, advogado e notário, que conheci na casa do Emílio. Curiosamente, Andreas, nome que vem de ανηρ, ανδρος (homem, másculo, viril), é um alemão grande, mas muito sensível, com uma alma feminina, meticuloso, afetivo, de voz doce e toque sutil nas cordas; Emílio tem duas possibilidades: a latina provem da família romana Aemilius, de aemulus, adjetivo que significa rivalidade, rival, ou, via grego, Αιμιλιυς, filho de Numa, o que fala de modo agradável. As duas possibilidades parecem contraditórias, mas meu amigo chileno (que adora o samba Trem das onze) pode caber ironicamente em ambas, com matizes, claro. Já Antonio, diz o dicionário, viria de ανθονομος, que se alimenta de flores, ανθος, flor, rebento. Si non è vero, como diz a Frau, me goschta.

 

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A gift, a love gift, / utterly unasked for” – Fechado mais um ciclo (o da universidade, em 1993, foi o do jornalismo), volto a ler partituras de violão solo. Começo pela valsa de Dilermando, Se ela perguntar, e avanço com Odeon e Brejeiro, de Ernesto Nazareth. No sábado, a surpresa: vamos a Langen levar as chaves que o Andreas esqueceu aqui em casa e, lá, em seu bureau, ele me leva ao porão para pegar um violão e me mostrar. Me faz experimentar e diante do meu agrado – é um bom instrumento, um Walden Madera, americano, com tampo de cedro vermelho, fundo e laterais de mogno – diz que posso ficar com ele. Felicidade em seis cordas. Uma dádiva.

 

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It felt great to be alive” – Sim, voltei a juntar passagens de metrô (eram então de ônibus), a comer banana cozida amassada, a ler partituras para violão solo, como se a chegada da velhice, da aposentadoria, fosse um reencontro com a adolescência (pena que o corpo desminta a bela imagem). Chove, a temperatura chegou a 11 graus, pouco comum nesta época do ano no Baixio dos Francos. Ontem, um esquilo tentava teimosamente comer a comida dos pássaros (sementes em uma rede pendurada na macieira em frente à janela da sala) enquanto eu falava com Haydée no whatsapp. Árvores e pássaros confusos com o clima (no rádio escuto que há uma expressiva redução no número de insetos na Europa). De volta ao Brasil, vamos à terra de Jorge, União dos Palmares, Maceió. Mas também à de Haydée, Alegrete, não longe da fronteira com o Uruguai. Quatro mil quilômetros separam União dos Palmares, nas Alagoas, de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Mais ou menos no meio, está Guaratinguetá, no vale do Paraíba.

 

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Inverno – 1º grau C. De manhã, no parque, a água do lago tem uma fina camada de gelo. Os patos, em fila indiana, atravessam desde a ilha, caminhando.

 

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Relações entre classes – Há tempos venho estudando essas complicadas relações que definem a sociedade em que a gente vive e cujas raízes estão profundamente arraigadas na escravidão, a incontornável cena primária de nosso corpo nacional. No entanto, não havia pensado ainda mais detidamente em meu próprio caso, o da minha família. Alamiro, oficial aviador da Aeronáutica, Haydée, do lar, seus três filhos, José Luiz, Antonio Carlos e Norma Suely, mais a Francisca Gonçalves Dias, a empregada doméstica, e Odette Guimarães Gonçalves, a mãe de Haydée, viúva de José, em um apartamento pequeno de três quartos, sala e dependências (maneira estranha de se referir à cozinha, ao banheiro e ao quarto de empregada, em geral, mas também neste caso, minúsculo e sem janela, contíguo à cozinha), anos 60, 70. O edifício um pouco recuado, sem elevador, de três andares, com dois apartamentos por andar, um na frente e outro nos fundos, um pequeno jardim na frente e uma garagem atrás, tinha a entrada “social”, à direita, e a de “serviço”, à esquerda, mais estreita e com uma escada bem apertada (a arquitetura revela uma política de espaços ou seja, quem tem direito a que parte do espaço). Uma vez fiquei ofendido com um comentário de um dinamarquês sobre esse tema espinhoso: dizia ele que fazia tudo em casa e não tinha empregados. Senti o ar de superioridade de um europeu de país rico arrotando, a partir de sua riqueza, as regras para um cidadão de país subdesenvolvido. Mas havia ali certamente algo ou não teria me incomodado. Andando hoje no parque pensando no projeto das biografias (Jorge e Haydée) e na ida a Guaratinguetá para ver a Francisca, me dei conta de que sabia muito pouco sobre sua vida. Havia trabalhado na roça, dizia, com a enxada, e por isso tinha os braços fortes, e estava na família desde 1958, quando meu pai (e a família) foi transferido para a Escola de Especialistas da Aeronáutica. Mas quando nasceu? Onde exatamente em Guará? Quem eram seus pais? Como foi sua infância e adolescência? Passou pela escola (lembro que fez o Mobral nos anos 70, então não deve ter ido à escola quando criança)? Por que foi oferecer sua força de trabalho como doméstica? Lembro que comprou um cavaquinho e que já sabia tocar, lá pelo fim dos anos 60; onde aprendeu? Que relação tinha com a música? Ouvia o rádio o dia inteiro, cantava, enquanto cozinhava, limpava a casa. A relação de afeto me fazia “esquecer” a relação de classe, coisa que ela, sempre muito afetiva, não esquecia, certamente. Francisca voltou para Guará em 2000, antes da morte de meu pai. Ela liga sempre. Falamos. Chegou a hora de ir vê-la, na cidade onde ela nasceu, onde moramos nos anos JK (1956 a 61) e onde nasceram também Dilermando Reis, Bonfiglio de Oliveira e Brito Broca.

 

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Ostpark – Sete graus, céu ainda muito encoberto, mas o sol consegue passar por entre os blocos de nuvens no horizonte. Quando chego no parque, pouco antes das nove, sou recebido por um voo em formação dos gansos cinzas que circulam grasnando, em torno do gramado central até pousarem, do outro lado de onde estou. No lago, os gansos do Nilo e os patos nadam excitados pela temperatura não tão baixa para a época do ano – já os gansos do Canadá sumiram. O barulho da cidade (as sirenes e o constante zum-zum do tráfico) me chega como um eterno lembrete da urbe; mais para os lados do Jardim das Escolas, ouço e vejo às vezes o trem que passa.

 

?

Diário de Haydée, 17/02/2000 – Caíram umas pancadas rápidas de chuva de madrugada. Amanheceu com tempo bom, 19 graus. Justi chegou cedo e dona Nilza também veio hoje para se despedir da Francisca. Fui fazer pé e mão. O tempo está instável, de vez em quando cai uma pancada de chuva. Renata ligou, está enguiçada no Rio Tavares e pediu para pegar Clara no colégio. Miro foi e trouxe-a para cá. Antonio Carlos e Renata chegaram logo depois e os três almoçaram conosco. Renata e Clara foram para casa e A. Carlos ficou mais um pouco e foi para a universidade. Ajudei Francisca a etiquetar as malas. Às 17h, A. Carlos e Norma apareceram, ela para se despedir da Francisca e ele para levá-la no ônibus que sairá da Alfândega. À noite, conseguimos falar com o Leo que está fazendo 18 anos.

 

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Irmandade – Foi uma dica de la Porrúa, não conhecia, me mandou uma foto da capa da edição da Entropía (traduzida por Juan Nadalini), En el estanque / Diario de un nadador. Uma semana depois, tenho nas mãos o diário, Pondlife / A Swimmer’s Journal, que me pega logo no primeiro fragmento: “2002 / Quarta-feira, 27 de março, 52º F / Os biguás se foram há cerca de duas semanas, as gaivotas, logo depois. Nunca havia mais do que meia dúzia de biguás, gaivotas no entanto havia aos montes. Às vezes, quando mergulhava, uma grande nuvem delas levantava voo, guinchando. Minha rotina é nadar rápido até a barreira de 25 jardas, cabeça na água, fazendo crawl, e então virar de costas e voltar mais devagar, admirando o céu e as nuvens, e o clima. E lá estavam as gaivotas, irritadas, se juntando e se afastando, fazendo balbúrdia.” Anoto no caderno os nomes dos pássaros em inglês, em português e alemão: the cormorants, os biguás, die Seeraben, the moorhens, as galinhas d´água, die Teichhühner, the coots, galeirão europeu, die Blässhühner, the heron, a garça, der Reihe, the magpie, a pega-rabuda, die Elster. O diário saiu em 2013 e conta sua rotina diária de nadador, tinha 73, 74 anos, nos lagos em Hampstead Heath, ao norte de Londres, e os efeitos da velhice em seu corpo. Morreu seis anos depois, com 90 anos. Saravá!

 

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Natação – Lendo Pondlife volto a pensar no que me incomodou na volta à piscina no ano passado, depois de ter nadado 10 anos, três vezes por semana, e ter parado por um problema no ombro. Agora, o barulho (a instrutora grita o tempo todo) e o excesso de gente (é preciso dividir a raia) roubam grande parte do prazer (engraçado que antes não me incomodava). Aqui em Francoforte do Meno ainda não encontrei um lugar pra nadar regularmente. No verão, vamos de carro até Alzenau, 40 minutos, já na Baviera, na região da Baixa Francônia, onde há um lago, Meerhofsee. De manhãzinha há pouca gente.

 

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Die Meise – De binóculo, observo os chapins (die Meise) bicando as sementes na macieira em frente à janela da sala entre as infindáveis repetições de Odeon para fazer os dedos se acostumarem aos movimentos rápidos e precisos. As costas reclamam (preciso de uma cadeira baixa só pra tocar). Dia de sol, 13 graus. É de se perguntar: e o inverno?

 

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Os novos deuses – O jornal de domingo traz uma matéria sobre o prédio de Hans Poelzig (nove andares, 252 metros de largura), que hoje é parte da Goethe Universität e que foi construído para abrigar a IG Farben, gigante da química responsável pela produção do gás Zyklon B utilizado para matar os judeus nos campos de concentração. Fui apresentado a ele em 2015 pelo professor Lichtblau (e escrevi sobre ele então) que me chamou a atenção para a beleza fascista do prédio. Pois bem, a matéria se refere ainda aos grandes prédios dos bancos no centro financeiro de Francoforte do Meno, como a torre dupla do imenso arranha-céu do Deutsche Bank, chamado de “ultramoderna arquitetura do apartheid” pelo sociólogo Ulrich Beck. Se nas cidades medievais as igrejas eram os pontos altos, o monumento construído para impressionar o pequeno homem comum com a grandeza divina, os arranha-céus dos bancos hoje ultrapassam qualquer medida, são a pura hybris, a desmedida, a arrogância em cimento, aço e vidro para que ninguém esqueça a dimensão do deus dinheiro.

 

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O homem velho – Lá pelas tantas, diz Alvarez: “Então aquilo que começou como diário de um nadador acaba virando uma crônica do envelhecimento.”

 

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Surpresa: um leitor – Caminhando pela Konstablerwache em direção à loja de produtos brasileiros que fica na Töngesgasse, reparo que o mendigo instalado na esquina da Fahrgasse, deitado, envolto em cobertores, lê um livro (3 graus). Passo na semana seguinte, ele não está, mas suas coisas sim, entre elas uma caixinha de papelão com os livros. (...) da liegt man nicht eng.

 

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Surpresa: um pintarroxo – E de repente, além dos assíduos chapins, apareceu um pintarroxo ou pisco (Rotkelchen, em alemão, robin, em inglês) na macieira enquanto conversávamos na sala com Cláudio. De binóculo, pude ver bem suas cores, o castanho da plumagem, a mancha vermelha na testa e a cabeça cinzenta. (No dia seguinte: agora são dois pintarroxos, e deu então pra ver que eles têm ainda um detalhe de amarelo na asa e o bico maior, meio branco, do que o bico dos chapins, que é mais escuro). Anke diz que são agoureiros, anunciam a morte. Me parece mais uma forma bela da vida.

 

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Destino de ave – E Guaratinguetá quer dizer, em tupi, muitas garças (gûyrátinga = pássaro branco, garça, etá = muitos). Saravá!

 

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Urweltmammutbaum – Caminhar até o parque (saio do prédio, viro na esquina à direita na Juchostrasse até a Röderweg, desço as escadas, atravesso a rua) faz parte da minha rotina aqui no Baixio dos Francos. Às vezes, entro pelo Jardim das Escolas (Schulgarten) e uma vez lá procuro pôr em meus olhos as duas sequoias gigantes, a chinesa e a americana. Ando em sua direção e paro diante da Urweltmammutbaum (Urwelt, o mundo dos primórdios, Mammut, mamute, Baum árvore). Ela não é especialmente bonita, mas alguma coisa desse Urwelt parece impregnar seu tronco (sempre penso no samba: portentoso e altaneiro – Brasil, ciência e arte, de Carlos Cachaça e Cartola, com ele a Mangueira ganhou o segundo lugar no carnaval de 1947), afinal é um fóssil vivo. Um pouco mais adiante, à direita, está a americana, também uma árvore mamute, mas sem o prefixo Ur, sequoiadendron giganteum da Califórnia.

 

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Dinossauros, mas – Fui pela primeira vez ao Senckenberg Museum, o museu de História Natural de Frankfurt, em Bockenheim. Me convidou o Victor, chileno exilado na Alemanha desde os tempos de Pinochet e amigo da Anke desde os tempos de universidade. Ele me espera na plataforma do metrô, quer me mostrar os dinossauros. Sim, lindos os sauros, mas quando entramos na sala dos pássaros estou em casa: vou reconhecendo os daqui e alguns dos de lá. Vou voltar.

 

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Na macieira – Hoje veio um pica-pau, um Buntspecht, preto e branco, com detalhe vermelho na barriga. Às 10h, dois graus e dia cinza.

 

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Herança da escravidão – A luta de classes aparece no cinema brasileiro desde sempre. Já no século XXI, temos Doméstica, de 2012, dirigido por Gabriel Mascaro, Babás, 2010, de Consuelo Lins, Som ao redor, 2012, de Kléber Mendonça Filho, Casa Grande, 2015, de Felipe Barbosa, Que horas ela volta?, 2015, de Anna Muylaert, mas também Santiago, documentário de João Moreira Salles cujo “fracasso” (filme ficou parado por 13 anos até ser retomado e montado em 2005 como “uma reflexão sobre o material bruto”) expõe as complicadas e cruéis relações entre patrão e empregado no Brasil, uma mistura de afeto (mas nem sempre) e violência (sempre). Em todos, a separação aparece marcada no espaço, no fotograma – por exemplo, na cena de Som ao redor, em que o senhor de engenho está à direita, no sofá, e a empregada, à esquerda, trabalhando; entre eles, uma coluna divide a tela. Me criei em um mundo de classe média do Leblon em que estas relações estavam naturalizadas, “invisíveis”, mesmo com a favela da Praia do Pinto começando na rua seguinte, rua Humberto de Campos, à que eu morava (à direita da Avenida Afrânio de Melo Franco, e passagem obrigatória para chegar ao clube, ficava a Cruzada de São Sebastião, os prédios “construídos” por Dom Hélder Câmara, que resistiram ao incêndio na favela em 1969, na madrugada do Dia das Mães, 11 de maio). Tenho alguma lembrança da favela, dos barracos de madeira, dos montes de lixo, dos porcos. E depois, na volta do Mato Grosso, a terra arrasada, pronta para ser ocupada pela classe média. A selva de pedra sobre a favela.

 

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Sacundim sacundá – Marcelo me manda um link com o samba do Gustavo (Praça): “Me desequilibrei, me desequilibrei todo / depois que aquela mulher me largou / Me desequilibrei. Uma delícia, o swing da síncope, a performance dele, a síncope ocorrendo no verso me desequilibrei. Aliás, comparando a partitura de Sons de Carrilhões, de João Pernambuco, digitada e revisada por Henrique Pavanelli, com a digitada e revisada por Turíbio Santos, me salta aos olhos a diferença: a correção da síncope, com uma divisão mais “quadrada” (colcheia seguida de duas semicolcheias), e a colcheia rodeada de duas semicolcheias, cheia de swing, de Turíbio. Sacundim gundim gundá! A tempo: Gustavo me avisa pelo whats que o samba é parceria com Zé Prego, da favela Santa Marta, no morro Dona marta, Rio. Zé fez a primeira parte e Gustavo a segunda.

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No avião pra São Paulo – Acabo encontrando entre as opções da telinha o novo (2018) disco do Gil, Ok Ok Ok (depois de ver interessado o documentário sobre Wilson Simonal). É disco de um homem velho (quando lançado, tinha 76 anos e faz eco com a leitura do diário de Al Alvarez), fala de vovô e vovó (Uma coisa bonitinha), dos netos, do corpo que vai perdendo sua força (Jacintho, Quatro pedacinhos), de Yamandu (que ouvi quase diariamente nos últimos três meses em Francoforte do Meno). É Gil, saravá!

 

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Arqueologia – O bunker sobre a sinagoga, a selva de pedra sobre a favela, a barragem sobre Canudos (1969, o açude de Cocorobó), a cidade dos brancos sobre o quilombo e os mocambos dos pretos. Der Drang, pressão, ímpeto, aperto, necessidade, aflição, angústia; pode ser física (necessidade de urinar), pode ser uma corrente poderosa, um fluxo (im Drang der Zeit, sob a pressão do tempo, im Drang der Geschäfte, sob a pressão dos negócios; pode ser um desejo intenso, uma ânsia, uma aspiração ou vontade; e tb empurrar, acotovelar, apertar, pressionar. Verdrängung, recalque, repressão. Para Freud, designa o processo que visa manter no inconsciente as ideias e representações ligadas às pulsões e cuja realização afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo, transformando-se em fonte de desprazer. Cruzar com o verso de Celan: (...) cavamos um túmulo nos ares, lá não se jaz apertado (eng). Lembrar do provérbio: o que arde cura, o que aperta segura (ou não).

 

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Acolhida boa – Em casa, me esperam alguns livros, entre eles O quilombo dos Palmares, de Edison Carneiro, livro de 1947 (encontrei na estantevirtual a terceira edição, de 1966, da Civilização Brasileira, com orelha escrita por Dias Gomes). É um livro belo, se é que a velha palavra faz jus à pesquisa de ponta na época e à escrita fina, poética. Por exemplo (adoro as enumerações): “Por toda parte, na floresta, elevavam-se sucupiras, sapucaias, paus d’arco, vinhático, putumuju, pau-santo, tatajuba, louro, maçaranduba, paraíba, sapucarana, pininga, imbiribas, canzenze...” Baiano de Salvador – nasceu em 1912 –, Edison Carneiro, que foi do Partido Comunista, morreu no Rio em 1972. Saravá!

 

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Dias de ócio na ilha – Mar, piscina, violão (preparando o repertório pra tocar na casa da Tita no Show de despedida – abri lá, em janeiro de 2016, o Quinta em Casa, Gil convida e agora volto, antes da ida pra Alemanha) e os livros. Nicht schlecht ou ... me goschta!

 

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História reprimida – Depois da cena primária da nação (a escravização em massa dos africanos para a produção de riqueza para os brancos), dois eventos me mobilizam: Canudos e Palmares. O país guarda, enterrado sob o mito da cordialidade, uma enorme história de violência (agora ela aparece com sua face mais grotesca: o capitão expulso, orgulhoso de sua ignorância, de sua mediocridade e de sua grosseria) – Leite preto d’alvorada / (...) bebemos e bebemos. Parte desse processo é o “esquecimento” dessas histórias de resistência: Canudos, a resistência do povo abandonado pelo Estado e acolhido pela religião, e Palmares, a resistência de quase um século dos africanos e afro-brasileiros que fugiam das plantações de cana-de-açúcar. Edison Carneiro desfaz o mito de que o Zumbi teria se jogado da Serra da Barriga durante o cerco de 22 dias dos paulistas ao mocambo do Macaco (“ficava no ponto em que está situada a cidade de União, que teve o nome de Macaco até 1831”) em fevereiro de 1694 (que está, por exemplo, nos últimos versos do poema infeliz de Jorge de Lima, Zumbi, publicado pelo jornal Estado de Alagoas, em 14 de agosto de 1921). Zumbi só morreria quase dois anos depois em luta, com seus homens, contra uma tropa comandada pelo capitão André Furtado de Mendonça. Dann habt ihr ein Grab in den Wolken da liegt man nicht eng (terão então um túmulo nas nuvens lá não se jaz oprimido).

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Ofício de tradutor – O verso de Celan – wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng – tem muitas variações em português. Por ex: Modesto Carone: cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado; Renato Suttana: cavamos um túmulo no ar onde não se há de estar apertado; Ricardo Domeneck: cavamos uma cova nos ares onde possamos espreguiçar-nos; João Barrento: cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados; Cláudia Cavalcanti: cavamos uma cova grande nos ares onde não se deita ruim.

 

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O bem do mar – Retomo a caminhada na praia do Campeche e o mergulho no mar, às 5h30min da manhã, quando quase todos os chatos (e tb os queridos, os próximos) dormem – cruzo nos fins-de-semana com os jovens terminando a noite, sempre meio bêbados, ouvindo funk alto no rádio do carro. Reencontro meus amigos costumeiros: o gavião, a garça branquinha de pés amarelos, o quero-quero, as gaivotas, o pirupiru, o pernilongo ou maçaricão de pernas longas e até um biguá. Me afasto da entrada da Pequeno Príncipe, caminhando à beira-mar, assisto ao sol nascer e com o calor do sol entro na água (havia rosas brancas na areia e também outras flores, dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá). Em casa, escuto e toco Caymmi.

 

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A perfect swim on a perfect day” – De volta à piscina, dividindo raia, a instrutora falando alto, mas nada me incomoda. Sinto apenas o intenso prazer de estar de volta, de estar na água, indo e voltando, devagar, crawl, peito e costas. Depois, direto pra Lagoa do Peri, onde encontro Gabriel, que trabalha no horto. Tinha sete anos quando apareceu – em 1993, estávamos vendo a casa pra comprar – perguntando se tínhamos criança. Morava em frente, onde ainda hoje mora sua mãe, a Wanda, sua vó, Dona Petó, e o irmão mais moço, Pedro. Cresceu aqui na rua com a Clara. Foi meu companheiro durante os duros meses da separação. Vai se adentrando pela botânica. Plantou hoje um ipê amarelo na frente da casa. Saravá!

 

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Diário de um nadador – (às 6h30min na piscina, depois um pulinho na praia, água gelada, sol quente, céu azul, quase sem nuvens) And why should I want anything else this late in my life?

 

(Actualización marzo-abril 2020/ BazarAmericano)

 




9 de julio 5769 - Mar del Plata - Buenos Aires
ISSN 2314-1646