diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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Diário de Viagem
Um tradutor no Baixio dos Francos.
Inverno na Ilha do desterro, outono em Francoforte sobre o Meno, 2019 (Ano I da Miséria Nacional).

Onde era que estavam as estrelas dianteiras,

e os macios pássaros da noite? – Pensei. Eu

tinha fechado os olhos. O cheiro dum

araçá branco formava bolas. Quietei.

(Guimarães Rosa)

 

Cadernetas de Official – 1ª Divisão da Directoria de Saude da Guerra / Pertence ao 1º Tenente medico Doutor José Gonçalves, Capital Federal, 20 de Março de 1928 / História da vida militar: Em, 1928 – janeiro – tendo sido nomeado 2º Tenente medico estagiário em oito de julho de mil novecentos e vinte e sete, para efetuar matrícula no curso da Escola de Applicação do Serviço de Saude, visto ter sido classificado em concurso e, concluído o referido Curso, classificado em 13º logar – foi por decreto de cinco publicado no Diario Official de sete, nomeado 1º Tenente medico do Exército, de acordo com o artigo 642 do Regimento do Serviço de Saude em tempo de paz, combinado com o decreto nº 16.764 de trinta e um de Dezembro de mil novecentos e vinte e quatro. (...) O comandante da referida Escola formulou votos pelas melhores venturas da sua nova missão e carreira e a esperança de que honrará as tradições de estudo, de trabalho e de disciplina e correlatas qualidades militares que deixou naquele estabelecimento. Fevereiro: Por despacho de primeiro, foi mandado servir no 6º Regimento de Cavalaria Independente, em Alegrete.

 

                                                                 *

 

A miséria da linguagem – (...) isso aí. Tá OK?

 

                                                                 *

 

Salomão e as mulheres – Neste primeiro romance de JL, uma das personagens se chama Invulnerata (aquela que não recebeu ferida), apelidada de Vulna, definida, a palavra, via Juvenal e Ovidio, como “racha, cortadura, fenda, talho, abertura, buraco”. Todas as epígrafes dos capítulos provêm dos Provérbios ou do Cântico dos Cânticos, da Bíblia. Curioso que no capítulo “No álbum de Vulna”, a epígrafe – “O meu amado meteu a mão pela fresta, e as minhas entranhas estremeceram ao estrondo que ele fez” (5,4) – apareça diferente do que está na Bíblia de Jerusalém e nas outras que consultei. Em todas, a fresta em que o amando põe a mão é a da porta: “Meu amado põe a mão / pela fenda da porta;/ as entranhas me estremecem, / minha alma, ouvindo-o, se esvai”. Há ainda uma nota na Bíblia de Jerusalém que diz: “O amado tenta forçar a porta, mexendo na taramela que era levantada de fora com uma chave de madeira”. Na edição da Vozes de 1982, coordenada por L. Garmus: “O meu amado meteu a mão na fechadura, / fazendo-me estremecer em meu íntimo”. Chama a atenção a versão de JL sem a fechadura, a tramela ou a fenda da porta e o fato de que, para além do estremecimento das entranhas, do meu íntimo ou da alma que se esvai, assinale a penetração da mão pela fresta com um estrondo. Duas estratégias de tradução: uma diz menos para dizer mais, a outra prefere confiar na construção da metáfora, a porta, a fechadura, a mão na tramela.

 

                                                                 *

 

Kaváfis – De um marinheiro pobre e oprimido / (oriundo de uma ilha do Mar Egeu) era filho. / Trabalhava com um ferreiro. Usava roupas surradas. / Os sapatos de trabalho dilacerados, deploráveis. / As mãos sujas de ferrugem e óleo. //

À noite, quando a oficina fechava / se havia algo que muito desejava, / alguma gravata um tanto cara, / alguma gravata para ocasião rara, / ou na vitrine se tivesse visto e queria / alguma camisa bela e alva, / o corpo por um ou dois tostões vendia. //

Imagino se em tempos antigos / havia na gloriosa Alexandria jovem tão belo, / moço mais perfeito – que tenha se perdido: / não havia, claro, estátua sua ou pintura, – / na velha oficina de um ferreiro esquecido, / rapidamente por trabalho e penúria / e por devassidão afligido, decaiu. Dias de 1909, 10 e 11 (1928)

 

                                                               *

 

Cipós – O quinto soneto dos XIV Alexandrinos (1914) se articula ao diálogo de Fernando com o Padre Josué, em Salomão e as mulheres (1927): em ambos, a ideia darwinista da sobrevivência do mais forte delineada pela metáfora da árvore humana e do cipó. “Como o forte aniquila quem é doentio”, diz o último verso do primeiro terceto. “De todos os lados o Imbé nacional sofrerá o arrocho, premido pelas raízes”, diz o reverendo no romance, ao que Fernando acrescenta: “Mas é facto biológico, retorqui: o ramo que se esgueira, que se estira, na lucta pela vida, pelo ar, nas florestas americanas, dá em cipó, cipó sinuoso mas forte e victorioso que floresce em panículas perfumadas, que esmaga, que comprime, que estrangula, que mata para vencer”. Já o soneto termina assim: “Então ele fugiu à compreensão funesta, / Estirou-se, alongou-se e em cipós se tornando / Ei-lo feito opressor esmagando a floresta”. Cipó de Imbé seria o título do romance em sua primeira versão de 1922.

 

                                                                  *

 

Cadernos – Achei a tradução do poema de Kaváfis em um caderno de 1996, quando estudava grego com Apóstolo Nicolacópulos na universidade – Clarinha era pequena e, a meu lado, copiava o alfabeto e recitava ζητω την χαραν ποτεδω, ποτεκει.

 

                                                                   *

 

Calunga – No romance de 1935, aparece meu amigo socó, como socó-binga: procuro a palavra binga no dicionário: corno, apêndice ósseo // isqueiro feito com ponta de chifre e lasca de pedra // lampião de querosene // espécie de cascalho // (informal) matéria fecal, titica, bosta, merda // coisa imprestável ou desagradável // pênis de criança ou pouco desenvolvido // marido traído, corno // orn. B m.q. beija-flor (etim. – quimbundo). Enfim, adoro essa vertigem do dicionário. Voltando ao Calunga, é esse o trecho: “Martins-pescadores, socós-bingas espreitavam peixinhos descuidados. Dos buracos dos mangues saíam caranguejos, uçás cabeludos parecendo vergonha de mulata”. Imagem que retorna em O Anjo: “O mangue amontoado atolando as raízes na lama, aratus dando adeus à tristeza do sol, goiamuns azulando, uçás cabeludos que nem as vergonhas das mulheres”. Socó-binga também povoa O Anjo.

 

                                                                  *

 

Rio, 3 de fevereiro de 1952 – Meu querido Miro / Até agora ainda não chegou nenhuma notícia sua; estou ansiosa por um telegrama para saber se você chegou bem. / Estou lhe escrevendo hoje, porque a saudade é muito grande e assim, pelo menos, eu faço alguma coisa para você. Meu querido, é muito duro ficar longe de você, mas o que me consola um pouco é pensar que talvez daqui a dois meses estarei para sempre perto de você. / Ontem depois que o avião saiu, seus pais me convidaram para ir à sua casa, mas não tive coragem; tudo lá, fala de você, embora aqui eu tenha mais recordações, porém eu teria a vantagem de estar sozinha. Meu amor, a falta que você está me fazendo é enorme e não sei como aguentarei; a única coisa que desejo neste mundo é ficar junto de você. / Maria Eugenia passou ontem o dia aqui e parece estar muito calma. Não compreendo a sua atitude. Logo depois do almoço, fomos ver o apartamento; o nosso já está todo dividido, a única coisa que precisa modificar é a passagem das duas salas; nós achamos melhor fazer, em vez do arco, uma porta larga de folhas, assim não inutilizaria o quarto. Você acha que fica bom? Ou prefere o arco? Outra coisa, o quarto que nós tínhamos escolhido não vai dar uma boa arrumação e por isso eu achei melhor o da frente que tem uma parede inteira livre para colocar o nosso armário. Querido, não ria dos meus planos porque me conforta pensar que um dia eu só empregarei o pronome nós. De lá fomos ao cinema Leblon ver Nascida ontem, é uma ótima fita.

                                                                                                                                                                                                                      *

 

Pássaro da noite – Fui ver Bacurau (e no dia seguinte passei pros alunos O som ao redor; já viram Vinil verde? Recife frio?). Saí do cinema com um sentimento bom de comunidade. Bacurau é um pássaro, explica a dona do bar aos dois motoqueiros que vêm de fora. Passarinho? Não, diz ela, um pássaro, um pássaro da noite. No meu livro de aves do Brasil, aparece como Nyctiprogne leucopyga, que tem vida noturna e branco o traseiro, família Nyctibiidae, subfamília Caprimulgidae. O dicionário versa: acurau, bacurau, curianga, curiangu, guiraquereá, ibijaú, joão-corta-pau, mede-léguas, engole-vento e noitibó. São bacuraus, corucões, curiangos. “como é que curiango canta. Que o curiango canta é: Curí-angú!

                                                                                                                                                                                                                   *                                                               

 

As velhas mangueiras – Relacionada à teoria dos cipós, o narrador de A mulher obscura (1939) desenvolve no capítulo XII um elogio às mangueiras, “seres tão majestosos e tão tranquilos” que tinham sob a copa “uma serena sombra misteriosa e virgem”. O parágrafo que termina o capítulo vem depois da visita do narrador e protagonista acompanhado de Irina à casa abandonada dos Vinhais, um capítulo carregado de tensão sexual, do desejo e da timidez do jovem inexperiente – em Salomão e as mulheres, está em “Uma tarde em Jerusalém” e a mulher é Vulna; JL aproveita de Salomão frases, toda a situação, mas o parágrafo das mangueiras só no texto de 1939. Pois bem, o narrador compara então a majestade da grande árvore com “a multiplicidade precária de certos vegetais que eu tinha visto agarrados à vida, sofrendo como condenados”. E qual era a diferença? “O ar que respiravam e o solo em que cresciam eram delas e por isso se mostravam gratas à terra estendendo os seus ramos em que não havia correntes de cipós, cerrando e entretecendo as copas numa contemplação e numa obediência milenares”. As árvores e os cipós.                                                                 

                                                                  *

 

Primavera – Em todos os cantos da casa, ouço os pássaros: os da manhã, os da tarde, do entardecer, os que aparecem nessa época, os que passam, os da noite, o pio triste do gavião. Com Paulinho, sentado no terreno comum no fim da rua, encostado no morro do Lampião e na mata, de onde vemos a ilha do Campeche e o mar, aprendo sobre os pássaros. No meio da conversa, vejo pousar em um tronco sem folhas um gavião carijó.

 

                                                                 *                                                             

 

Outono – Há duas semanas na Alemanha. As folhas amarelas, marrons e avermelhadas cobrem a rua e a calçada. Os pássaros ainda correm de lá pra cá atrás do pouco que resta nas árvores e no gramado. No Ostpark, um espetáculo de cores. Pouca gente passeando, poucos gansos. Do Brasil, todas as manhãs leio as notícias bizarras. Nem cinco da tarde e já está escurecendo. O bom é que hoje vou a Langen tocar com os amigos.

 

(Actualización diciembre 2019 – febrero 2020/ BazarAmericano)




9 de julio 5769 - Mar del Plata - Buenos Aires
ISSN 2314-1646