diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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“Catervas addensadas de
urubus, sarjam a limpidez
dos ares salsuginosos”
Jorge de Lima
“Filha do medo, a raiva
é mãe da covardia”
Chico Buarque
“É a um fantasma (...) a que o professor
deve voltar anualmente, no momento de
decidir sobre o sentido de sua viagem;
desse modo, ele se desvia do lugar em que
o esperam, que é o lugar do Pai, sempre
morto, como se sabe; pois só o filho tem
fantasmas, só o filho está vivo”
Roland Barthes
Afasta de mim esse cálice – Médicos e militares provocam em mim um sentimento estranho e contraditório. Já foi dito que meu avô era médico e militar, meu avô José, pai de Haydée. Pouco ainda que meu pai também era militar, piloto da Força Aérea, formado em 1951, aspirante em Natal, Rio Grande do Norte, em 1952, quando se casou com Haydée. Da medicina, a primeira lembrança (talvez daí o medo?) é uma operação de garganta (que depois comprovou-se ser um erro); dos militares, o medo de avião e uma cena nebulosa na Avenida Brasil, um pequeno incidente de trânsito sem consequências, em que Alamiro mostra a arma para aquele com quem se desentendera. O medo se articula às duas experiências.
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Kriegsfibel – A foto mostra um militar gordo e grande, fardado, de mãos na cintura, a suástica em primeiro plano em seu braço gordo, encarando um militar pequeno e magro que, com a mão no peito, parece perguntar: Eu? Ao fundo, outros soldados. A legenda: (Hermann) Göring und (Joseph) Goebbels. O epigrama: “Dizem, José, que você falou de mim: // Que eu roubava.” – “Por que você o faria, Hermann? // Negar algo a você, seria ousar em demasia. // E mesmo se tivesse dito, quem acreditaria?”
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Vizinhança perigosa – Nos anos 70, Marcelo costumava jogar futebol no campo do quartel da Polícia do Exército, na Barão de Mesquita, Tijuca. Não passava por sua cabeça que ali mesmo funcionava o DOI CODI, responsável pela morte e tortura de tantas pessoas. Rubens Paiva morreu lá, depois de ser torturado e atendido pelo tenente médico Amílcar Lobo. Marcelo tinha 12, 13 anos, e não sabia das torturas.
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Higiene e Eugenia – Rassenbildung como resíduo, excrescência, resto dos afazeres domésticos, da batalha diária – “a guerra é a grande lei natural” –, que corre por baixo da obra do poeta da Negra Fulô. O que resulta das guerras?, pergunta em O destino higiênico do lixo no Rio de Janeiro. Vencidos e destroços. A guerra contra as pulgas, as moscas e os ratos – “que semeiam o mal” – , exige uma política sanitária, de higiene, diante da fraqueza do Estado no tocante à limpeza pública: “Ao cabo de tudo isto, a todos chega cedo o alquebre, senão o desafiuzar na extinção da terrível epizootia murina, com a inópia indecifrável do Serviço de Limpeza.” Política de Higiene, Política de Eugenia – Läuterung, purificação, decantação, purgação, sublimação, é a palavra que usa em Rassenbildung. Lixo vem de lixar, tirar excessos, limpar, jogar fora o excrescente, do italiano liscio, sem rudeza ou escabrosidade na superfície – em português, liso, que tem a superfície plana, sem asperezas ou escabrosidades – lisciatura, embelezamento, do latim lix, licis, água, cinza, decoada, barrela, lixívia, lixabundus, a, um, que caminha fora de ordem. Ratos, moscas, pulgas e as raças horríveis, inferiores que seriam um entrave à “higiene nacional”. Portanto, a higiene, a lixiviação ou lixiviagem (lixiviar = tornar branco), ou seja, a arianização ou embranquecimento (tese defendida em Rassenbildung) e a eugenia, a técnica do bom nascer: é preciso “começar com a instrução hygienica da plebe”.
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Higiene e Eugenia II – Plebe, ralé (cap. Primeiro, “os bairros da ralé”) e o personagem baudelairiano, o trapeiro, le chiffonnier, do poema Le vin des chiffonniers (Fleurs du Mal), que aparece no Capítulo Primeiro da Tese do Lixo: “(...) o trapeiro cauteloso retira o que a burguezia engeita, para a satisfação pequena das ambições commedidas dos bairos (sic) da ralé.” Benjamin, leitor atento de Baudelaire, diz que os trapeiros (Lumpensammler) “começaram a aparecer em grande número nas cidades quando o lixo passou a ter certo valor, devido aos novos processos industriais”. É possível, portanto, estabelecer uma relação entre a Tese do Lixo e Rassenbildung na medida em que ambas esboçam uma política de limpeza, de lixiviagem, uma política “absconsa a nossos olhos”, pois vazada em uma linguagem rebuscada, cheia de palavras raras (na Tese) ou impresso em alemão gótico “para atordoar os índios aí da Avenida”, como escreve Ildefonso Falcão em carta de 10 de novembro de 1934 a Jorge de Lima sobre a edição na Alemanha de Rassenbildung. Em ambos, trata-se do que fazer com o resíduo, como lidar científica e racionalmente com ele de modo a garantir um futuro limpo e branco, Läuterung.
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Guerra de Colonização – Aílton Krenak olha pra câmera e diz que a guerra nunca terminou, que os povos originários estão em guerra com os invasores desde que estes chegaram para explorar, matar, escravizar e privatizar a terra.
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Diário de Haydée – Tempo meio nublado. Quando saía para a aula de Tai-Chi, Justi estava chegando. Antonio Carlos e Renata passaram para me pegar e fui com eles até o La Boéhme pegar uma quentinha para Justi, subi para deixar aqui e fui com eles a Cacupé para almoçar no “Zé do Cacupé”. E lá eles me contaram que estão se separando, mas amigavelmente e sem nenhuma mágoa. Ele vai ficar na casa e ela e Clara vão alugar um apartamento, enquanto não vende o do Rio, aqui perto da Universidade. É uma pena depois de 20 anos, mas o que se vai fazer. Me deixaram aqui e foram no Angeloni. Justi saiu às 13:30 e o Anderson chegou logo depois para arrumar o computador que está cheio de vírus. Antonio Carlos e Renata vieram tomar um copo d’água e foram para casa. O Anderson saiu às 14:30. Choveu à noite. 23 de março de 2006
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Viagem à África – Em 1963, Câmara Cascudo vai à África com uma pesquisa sobre a história da alimentação financiada por Assis Chateaubriand. Da viagem resulta Made in Africa de onde recolho uma citação, uma leitura, de Rassenbildung: “Como o português não isolou, não enquistou, não fixou o preto, esse sentiu-se brasileiro, indo buscar mulher e ganho onde quisesse, multiplicando as esculturas em chocolate e sapoti, cortando-o-sangue, clareando-o-amor, dispersando-se nas gradações do pigmento. O saudoso Jorge de Lima expôs excelentemente esse assunto no seu Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien (Leipzig, 1934)”. Mais à frente, escreve Cascudo que no Brasil o negro se aproxima do branco “pela ponte econômica”, ou seja, pelo dinheiro: “Ganhava os postos, engenhos de açúcar, fazendas de gado, comércio, casando com sinhá-moça, branqueando o couro”, destaque do autor, para concluir dizendo que “o poder administrativo atuava como fórmula arianizante”, palavra muito presente em Rassenbildung. Como Freyre, destaca a presença dos negros na vida doméstica dos brancos (“também tive a minha, Joana de Modesto, falecida com mais de cem anos”), lembra as vozes “mansas das negras mucamas”, mas esquece de lembrar da violência. Democracia racial: “Ainda há muito a recalcar” (Ancila Negra in Poemas Negros).
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Culpa do Sol – No final de “Do Negro e do Preto” (Made in Africa), Cascudo escreve que “o critério popular europeu, levado ao continente americano, lindava o preto numa apreciação reduzida” – lindar = limitar, delimitar, demarcar; apreciação reduzida, o que dizer? – “decorrente da própria espécie de sua colaboração, escrava, servil, submissa”. Colaborar = laborar com, cooperar, participar; como se pode dizer que os escravos colaboravam? Cinismo ou cegueira? “A culpa fue del tiempo”. Para Chico Buarque, em As Caravanas, “a culpa deve ser do Sol”, sinal irônico para a descrição da violência bruta que emerge dos cidadãos da Zona Sul do Rio diante da “invasão” da caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba”, do Irajá, da Penha, “desses estranhos suburbanos muçulmanos do Jacarezinho a caminho do Jardim de Alá” ou seja, os descendentes dos escravos. Enquanto Chico desvela a violência, Cascudo arremata: “Fora assim desde Roma”. O pretérito-mais-que-perfeito parece encerrar a discussão remetendo o problema aos romanos: “Sol // A culpa deve ser do Sol”.
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Carta de José ao irmão Mário – Prezado irmão // Quasi que restabelecido da terrível epidemia que assolou o Rio, escrevo-te hoje não só para saber notícias suas e dos seus, com o também para communicar-te certas coisas que por aqui se passam; assim, a aprovação do projecto em virtude do qual todos os estudantes das Faculdades Superiores e dos Colégios Pedro II e Militar são promovidos de ano sem prestarem exame, pois sel-os-hão por decreto. Este projecto ainda faculta, aos que tiverem todas as preparatórias até 1919, a entrada para qualquer Faculdade Superior sem vestibular; ainda mais: qualquer indivíduo, seja ele carroceiro, quitandeiro, saiba ou não ler, poderá tirar os preparatórios no Pedro II, desde que apresente um atestado de qualquer professor, declarando que o referido indivíduo estudou durante o anno as matérias de que necessita. Isso tudo é uma bandalheira, mas como bandalheira no Brasil quer dizer coisa séria, os deputados e senadores aprovaram-na quase unanimemente. // Ora pois caro irmão, eis-me bacharel por decreto, graças à espanhola. // Aqui todos vão bem, eu ainda estou com o pé estropiado, mas espero ficar curado breve. // Lembranças a todos dahi (ilegível) José, Cachamby, 1 de dezembro de 1918.
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Poucos leram Rassenbildung – Posso citar entre esses poucos Roger Bastide (“o trágico de Jorge de Lima tem algo do remorso do assassino”), Maria Graciema Ache de Andrade (tese defendida na PUC do Rio sobre A invenção do ritmo em Jorge de Lima), Daniel Glaydson Ribeiro (Jorge de Lima e os nativos da ilha), Johann von Leers, doutor em Direito, membro do Partido Nazista, Hans Kramer, Landesbauernführer, espécie de secretário da Agricultura, da Renânia, durante o III Reich, também membro do Partido nazista, que ajudou o cônsul brasileiro em Colônia, Ildefonso Falcão a encontrar editora para o livro, e Luís da Câmara Cascudo, que o cita em Made in Africa. Para Cascudo, “Lima expôs excelentemente esse assunto em seu Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien”. Qual assunto? O da arianização, do embranquecimento, tese racista que vinha do século XIX (Silvio Romero a defendia em sua História da Literatura Brasileira de 1888) e que o poeta ainda sustentava depois da II Guerra Mundial, em 1951, quando a reeditou, dois anos antes de morrer.
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Euclides sou eu – Jorge de Lima publica em 1943, na Atlântico revista luso-brasileira (resultado de um acordo entre a ditadura Vargas e a ditadura Salazar), de Lisboa, um texto chamado À margem de Euclides. Um texto curioso, um bom exemplo de lembrança seletiva e de identificação inconsciente para uma boa autocrítica. Seria interessante colocá-lo lado a lado com Síntese de literatura, publicado em A Manhã, em 1949. No primeiro, o autor da Negra Fulô critica Euclides da Cunha por ser de uma geração que acreditava “que a ciência pudesse sempre dizer a última palavra”, chama-o de “fanático da antropologia física”: “Apreciando-lhe a logomaquia científica, derramada naquele estilo complicado, a gente fica pensando na prole de frases que o célebre escritor poderia dar-nos, se ao invés da antropologia estéril de seu tempo, tivesse conhecido o assunto fecundo da eugenia de hoje”. Jorge parece falar de si mesmo, quando fala de Euclides: que eugenia de hoje? Hoje, 1943, ano em que a eugenia nazista (e não só, vale lembrar) produzia tantas mortes nos campos de concentração? A eugenia de hoje é a que ele defendia, cientificamente, em seu Rassenbildung publicado em 1934 na Alemanha nazista? Fala ainda contra os “doutores inchados de ciência” que “degeneraram em políticos”, como ele, talvez, que se elegeu deputado em Alagoas pelo Partido Republicano e vereador no Rio pela UDN? Como ele que colocou na capa de Rassenbildung, no alto, à direita, seu título de doutor em Medicina?
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O prefácio que não saiu – É o escritor Moacir C. Lopes que, na apresentação da edição de 1970, da Antiga História do Brasil (de 1100 a.C. a 1500 d.C.), pela editora Cátedra, me dá alguma informação de Ludwig Schwennhagen. Segundo ele, ainda havia então em Teresina uma memória de que “por aqui passou um alemão calmo e grandalhão que ensinava História e bebia cachaça nas horas de folga, andava estudando umas ruínas no estado do Piauí, e que chegou a Teresina no primeiro quartel deste século, não se sabe de onde e morreu sem deixar rastro, não se sabe de quê, e andava rabiscando uns manuscritos sobre a origem da raça tupi, lendo tudo o que era pedra espalhada por aí. Seu nome era tão complicado que muitos o chamavam Chovenágua”. Pois ele escreveu um prefácio para Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien, que, com outro título (Die geschichtlichen und nationalen Grundlagen für die zukünftige Kulturentwiklung des brasilianischen Volkes, Fundamentos histórico-nacionais para o futuro desenvolvimento cultural do povo brasileiro) aparece anunciado na contracapa de Salomão e as mulheres, de 1927, juntamente com três parágrafos desse prefácio de Chovenágua. Assinado e datado de Natal, 25 de fevereiro de 1927, é uma curiosa peça desta obra subterrânea de Jorge de Lima. Teríamos assim três prefaciadores: Ludwig Schwennhagen, Hans Bayer e Otto Schneider, para um texto escrito em 1924, anunciado com outro título em 1927 e publicado em 1934 e 1951.
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Arianização – “Com a extinção do tráfico d’africanos, o gradual desaparecimento dos índios e a constante entrada d’europeus, poderá vir a predominar de futuro, ao que se pode supor, a feição branca em nosso mestiçamento fundamental inegável.” Está no sexto capítulo da História da Literatura Brasileira, que Silvio Romero publica em 1888, portanto no ano da Abolição, a tese do embranquecimento defendida por Jorge de Lima dos anos 20 até 1951. “No momento em que traço estas linhas troa por toda parte o ruído das festas da abolição”, escreve no prólogo da 1ª edição. Troava, mas a República que adveio do golpe militar positivista não produziu nenhuma política de integração dos libertos e apostou tudo na imigração de europeus.
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Os fenícios e os latinos – A tese de Chovenágua, exposta no livro Antiga História do Brasil, cuja primeira edição, de 1928, é da Imprensa Oficial de Teresina, afirma que os fenícios descobriram o Brasil em 1100 a.C.. No prefácio que escreveu para o livro de Jorge de Lima, Schwennhagen trata de contestar a ideia de que o Brasil é um país latino: “A língua oficial do Brasil é a língua luso-românica de Portugal; mas não por isso são os brasileiros latinos. Língua e sangue são elementos muito distintos. Tampouco os portugueses são latinos. Fala-se de boca cheia de uma comunidade de interesses entre os povos latinos ou da raça latina, a que supostamente franceses, portugueses, espanhóis, italianos e romenos pertencem. Na verdade, os franceses são, segundo sua origem, 60% gauleses, 30% germânicos e 10% latinos. Os portugueses têm apenas 5% de sangue romano; seus livros escolares são os primeiros a esclarecer que a nação portuguesa é uma mistura das seguintes parcelas nacionais: iberos, celtas, celtíberos, fenícios, hebreus, troianos, gregos, cartaginenses, romanos, suevos, alemães, visigodos e árabes. Onde fica então a raça latina no Portugal de hoje?” Uma pesquisa na internet acaba nos levando a um Ludwig Schwennhagen que seria sócio do jornal antissemita Staatsbürgerzeitung, de Berlim, no final do século XIX. A fonte é de um livro de Barnet Peretz Hartston (Sensationalising the Jewish Question), publicado em 2005, pela Brill, de Leiden, Holanda. Seria o antissemita ligado ao Völkische Bewegung do final do XIX a mesma pessoa que aparece no Norte do Brasil no início do XX?
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Diário de Haydée – Almoçamos às 14:00, José Luiz veio me pegar e fomos novamente visitar o Miro: não gostei do quadro. De lá, fomos na Norma para deixar um papel. Passamos no Angeloni. Eduardo e Mariana vinham lanchar. Ao chegar em casa, o telefone tocou: era do hospital pedindo nossa presença. Miro morreu. 8 de janeiro de 2004.
(Actualización Julio – agosto 2019/ BazarAmericano)