diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90

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En reseñas:

Antonio Carlos Santos y Jorge Wolff
Manigua e a antropologia do desastre
Manigua, de Carlos Ríos, Entropía, Buenos Aires, 2009.

 

 

Para ler Manigua –novela de estréia de Carlos Ríos– o leitor não pode contar com marcos firmes, pilares seguros ou mesmo personagens, no sentido convencional do termo. Assim como as diversas tribos que a atravessam e povoam, a novela “swahili” do escritor nascido em Santa Teresita, na costa argentina, superpõe e desloca sem cessar vozes e imagens, modos de falar, de ver e de viajar, sempre em bandos e em direção à “provincia costera”. Suntuoso espetáculo da vida nua feito de plástico, lixo e papelão, o relato se desdobra palimpsestuosamente (como diria Haroldo de Campos) num antes e depois do “processo civilizatório”. Nesse espetáculo anacrônico e “desgeograficado” (Mário de Andrade), os clãs em trânsito e em guerra permanente carregam consigo toda a tralha tecnológica – celulares, câmeras, tevês – mas reclamam antes de tudo a desregulamentação da antropofagia: “Se habla de despenalización del aborto o las drogas, pero lo que todo el mundo se pregunta es cuando los gobiernos desregularán la antropofagia”. A propósito da antropofagia, o escritor saqueia sem hesitação os arquivos da world wide web, se apropriando de nomes próprios, nomes de cidades e de etnias africanas.

Misturam-se também a voz taína na escolha do título (manigua), a Argentina na epígrafe de Hebe Uhart, os personagens, lugares e comidas africanas para compor uma história, definida pelo próprio escritor como uma “antropologia do desastre”, em um tempo presente que está atravessado por outros tempos, o dos mitos, dos clãs. Trata-se, ao fim das contas, de um filme, ou melhor, da posta-em-ato de um método onírico-mitológico de capturar “imagens acústicas” cujo fim é a escuta, o desenho e a escritura da vida, isto é, da morte. Como disse Plínio, o velho, “entre todas as graças concedidas pela natureza ao homem, nenhuma supera a da morte no tempo oportuno”.

O tempo oportuno, no caso de Apolon e seu irmão moribundo, é rigorosamente o tempo da narrativa, o tempo de uma história-que-se-conta, que é também o tempo de uma história-que-se-desenha: a enfermeira não-nomeada do irmão não-nomeado desenha minuciosamente a vida e a morte: “Sobre la mesa había centenares de dibujos. ¿Qué es esto?, le pregunté. Son los dibujos que hice de las historias que cuentas a tu hermano, dijo. En trazos de carbonilla, vi secuencias anteriores de mi vida. También el futuro. Mi hermano muerto, el regreso con los de mi clan”. Mas não se trata de uma máquina de filmar, como em La invención de Morel, e sim de uma encenação em que urge contar e esculpir o tempo. “A encenação é o esforço incansável para o confronto do ser humano consigo mesmo”, disse Iser. “Los hermanos desaparecidos animan mis pasos”, disse Apolon.

Mencionou-se acima algo do início e algo do fim de Manigua e, no entanto, não há aí mais que sombras fugazes do que esse poema cosmogônico realiza em tão pouco espaço, o que o próprio título sugere. Seus significados, por sinal, aparecem reproduzidos do verbete do Dicionário da Real Academia Espanhola na primeira página do livro – 1. abundancia desordenada de algo, confusión, cuestión intrincada; 2. conjunto espeso de hierbas y arbustos tropicales; 3. bosque tropical pantanoso e impenetrable; 4. terreno, con frecuencia pantanoso, cubierto de espesa maleza tropical –, imediatamente antes da não menos esclarecedora epígrafe de Hebe Uhart: “Lo único que podría decir en cuanto a mi tribu es que hacen lo que les parece mejor, lo que pueden y lo que creen con el poco mundo que conocen”.

Com cinco dúzias de páginas, o livro tem uma narrativa central, uma fábula, que é contada por Muthahi (Apolon) a seu irmão que está morrendo – para ser líder, ele tinha que ir até a província costeira buscar uma vaca para o nascimento desse mesmo irmão que escuta a história. Quase no final, ficamos sabendo que essa narrativa acontece em uma instalação realizada por um antropólogo e artista inglês: nela, à espera da morte, ambos ficam expostos publicamente durante 25 dias, tempo que Muthahi leva para contar a seu irmão como conseguiu a vaca e depois a perdeu e foi castigado; tempo também da morte do irmão.

Diante de tais espectros, resta-nos tentar captar algumas das vozes e imagens de Manigua, a começar por Muthahi, líder suaíli sem seguidores que não conhece sua mãe e em crise com seu pai, quem mesmo assim o elege para “encontrar la señal que impulsara su pueblo a moverse en dirección al mar, hacia la provincia costera”. Enfrentando fome e sede em massa, cercos sanitários, cidades destruídas repletas de minas, os migrantes atravessam cidadelas africanas “realmente existentes” (Kwale, Kilifi, Mombasa) entre os temidos e intoleráveis “kikuyus”, os “lúos”, os “kalenjins” ou os “kambas”, um dos quais fornece uma senha que soa como um mantra ao obnubilado leitor da novela: “¿Has estado allí? ¿Dónde? En su mente”. Ainda que, conforme observa um dos homens kamba, “mientras desolla un animal con el cuello de una botella”, “Nada será como Muthahi lo ha diseñado en su mente”. Será antes como a enfermeira (kamba?, kikuyu?) o faz, nesse abismo de histórias escritas com luz e carvão.

Retorno ao território perdido, busca da linhagem comum, da unidade impossível do clã: “Sólo en ese programa de acarrear el clan a las tierras de origen coinciden Muthahi y su padre”. Batismo de Muthahi como Apolon (“Cada clan, su Apolon”): o pai joga terra vermelha em seu rosto e o desafia a trazer uma vaca que “sacrificaremos cuando nazca tu hermano”, o mesmo irmão moribundo que rogará por suas histórias “muchos años después” na enfermaria. Viagem sobrenatural de ônibus – em que os passageiros sedentos e famintos são como escravos do chofer – em direção ao mercado da província costeira, à procura do animal sagrado; intercâmbio de gestos e rumores com misteriosa mulher. Ela tem por profissão demolir casas, além de se dedicar a escrever um manual para ensinar as pessoas a utilizar as casas (“Apolon tampoco lo sabía”), a depilar pessoas e a tocar música “benga”: “Los patrones rítmicos que le arrancaba a su instrumento eran delicados, tristes y de tonos claros. En manos de la hija de Donise Kangoro, la guitarra semejaba el quejido de una serpiente a punto de morir de sed”.

Mesclando narradores, em discurso indireto libérrimo, o relato andou bem um terço quando entra, finalmente, a figura do irmão enfermo à escuta, pendurado, como Apolon, em sua cesta de vime. Esta a “encenação” de base em Manigua, fábula e instalação, cujos personagens mortos de medo “salían de una ciudad para meterse en otra”, segundo o negro albino Donise Kangoro. Ele é o pai da mulher que mal conhece, além de fundador da “cidade de plástico y madera”, São José dos Ausentes (grafada em português e “realmente existente” na região dos cânions do sul do Brasil). É seu dono em segredo (a única que o sabe é a filha ausente) já que o sentido da propriedade se perdeu. “En tu sangre camina el odio de tu padre hacia los de mi clan”, diz Donise Kangoro a Apolon, prometendo superar o desejo de matá-lo. “Necesito una vaca, rogué”. “Cuéntamelo todo antes de que secuestren nuestros cuerpos”, suplica por sua vez o irmão. “Cuando aparezca la señal, camina hasta el mercado”, ensina Kangoro, que diz conhecer seu pai e seu clã como a palma da mão: “Casi no tienen hábitos sexuales y sólo comen carnes blancas”.

A esta altura, metade do caminho, é possível remeter à novela inédita do autor, Cuaderno de Pripyat, visita filmada à cidade-fantasma ucraniana pós-Chernobyl, onde atua a Cruz Vermelha em meio a bichos-homem e homens-bicho, incluindo a poeta ucraniana Oksana Zabuzhko (como Kangoro, outra figura real que Carlos Ríos agrega à narrativa). Há muitos pontos de contato entre as duas histórias: o procedimento de tornar imperceptível a fronteira entre ficção e realidade, já que utiliza nomes de pessoas e lugares reais, o tema da família (que leva o personagem-narrador de Cuaderno a Pripyat e Muthahi a buscar a vaca que será sacrificada no nascimento de seu irmão), das cidades que sobreviveram ao colapso da civilização (Pripyat evacuada por causa da irradiação e São José dos Ausentes, em meio à guerra disseminada), dos meios técnicos (em ambas, a presença do vídeo, do documentário), etc.

O fundador de São José dos Ausentes, cego como o pai de Muthahi, é um ex-médico da Cruz Vermelha que chegou a atender duzentas pessoas por dia em território kikuyu, o que lhe permitiu sobreviver. Também dissecava cadáveres “para entender lo que pasaba”, em uma “investigación emocional y hasta moral de mi pasado, mientras descubría el vasto y misterioso mundo del cuerpo”. Uma investigação do corpo através da mente e da mente através do corpo em forma de pós-fábula, isto parece ser Manigua, assim como Pripyat, protagonizada (?) esta por um “destazador de reses” e marcadas ambas pela urgência de narrar. Marcadas igualmente por algo “rancio”, rancidus: a “culpa rancia” de Kangoro por não ter salvo uma enfermeira-amante; o espanhol “rancio” de Oksana, aprendido em Medellín... Marcadas ambas, ainda, por um ritmo que alimenta aos poucos o leitor com pistas e sugestões a respeito das peripécias da narrativa. Por exemplo, em Manigua, a tardia entrada em cena do irmão-que-morre que compõe a paulatina revelação da encenação pública da morte, a aparição do antropólogo inglês em dois momentos-chave, a repetição da bela imagem da cidadela que reluzia aos pés de Muthahi como “el cuerpo de un animal puesto a secar”.

Costumes indígenas à solta, insultos para desejar boa sorte, como os índios que choravam para saudar (Ianomanis do Amazonas lembrados logo adiante). Kangoro, que é “tan negro como tú, pero albino”, insulta Apolon: “Dijo: decir barbaridades para augurar éxito a cualquiera en su viaje”, que então se vai: “Tuve que procurar la vaca que por derecho divino pertenecía a mi clan”. Encontra uma espiral de violência em Kisumu, “hacia donde iba el padre de Apolon con su clan”. Chora por todas as tribos diante da violência do exército exibida na tevê.

            Donise Kangoro usa a pele de seu pênis para emitir sons de elefante, atrair a fêmea e usar como atiradeira. Fazendo uso da funda, derruba um pássaro que Apolon deve cozinhar para então encontrar seu animal no mercado: “una ciudad pintoresca y mínima”, São José dos Ausentes. Contudo, além do couro peniano, há a bola verde de goma presenteada pelo “antropólogo inglês” ao irmão de Apolon quando este era menino. O irmão com câncer fala: “No creas que estoy muerto. Escucharé la historia del animal sacrificado el dia de mi nacimiento y luego iré en paz. Después la pelota de goma será tuya”.

Quando se entra no último terço de Manigua aparece a única referência explícita ao fim dos tempos: “Entré en la ciudad que Donise Kangoro, dijo Apolon a su hermano menor, había imaginado como una metrópoli sobreviviente al colapso de la civilización”. Como Pripyat, porém, a cidadela, o porto de papelão e plástico, “la única salida de su país al mar”, fracassou:

 

“Hoy, después de décadas de guerras sucesivas, la ciudadela, que tuvo su punto más brillante antes de la entrada de los gobiernos provisionales de Occidente, encarna más bien el fracaso, la aldea vencida, su irremediable hundimiento. Edificios de cartón destruidos por el fuego y los machetes, coches despojados de sus asientos y sus vidrios, el desplazamiento de hombres enmascarados como si así, poniendo una máscara negra sobre el rostro negro, apareciera la única forma de vida posible.”

 

Ocorre que, em vez de comer o pássaro ferido para absorver seu espírito, Apolon decide trocá-lo pela vaca de que tanto necessitava no mercado da cidade. “Soy Apolon”, disse a um “kikuyu cualquiera”, e “por eso voy a llevar este valioso animal. Era una vaca vieja, argentina, desdentada, a la que le faltaba un cuerno, de color café. Las tetas se arrastraban por el piso”. A exemplo de várias novelas de César Aira ou de Mario Bellatin, que também trabalham com a necessidade de seguir contando histórias em meio à catástrofe, de repente o leitor se surpreende às gargalhadas. O artesão kikuyu, como os seus pares, colhia “la mierda recién salida del culo de los animales y con ella moldeaban las figuras de buey que previamente diseñaban con la miga de los panes”. Apolon, contudo, para obter o animal, se vê obrigado a passar por Donise Kangoro, a quem o artesão, aterorrizado, suplica por piedade: “Por la gracia de Dios, no me mate. Aqui tiene su vaca”.

Apolon vê ou pensa que vê a filha de Kangoro no mercado. “De una radio escapó una plegaria y todos la repetieron antes de que comenzaran a matarse”. Corta para a enfermaria. O irmão dorme, a enfermeira atrai Apolon até seu quarto, conta Apolon ao irmão. “Llamó por celular a una casa de comidas y antes de que el reloj marcara las diez de la noche, en la mesa de su cuarto había platitos con sukuma, ugali, guitheri, nyama choma, sambusas y dos cervezas negras” – todas comidas típicas do Quênia. Mais adiante, quando fumam juntos, Muthahi escuta seu irmão falar para observar em seguida: “Nadie te recordará, le dije en un susurro. Un día ni siquiera mi recuerdo estará en pie. Nada quedará de nuestro clan”. A destruição chega também a São José dos Ausentes (p. 50, fragmentos 49 a 52) na forma da guerra e da inundação e Muthahi, em vez de ser morto pelos kikuyus, ganha deles uma vaca que se perde no lago Nakuru, onde ele reencontra a filha de Donise Kangoro. Por fim, volta a seu clã sem a vaca e é castigado. Novamente, quem o salva é a filha de Donise Kangoro. Com o fim da história da busca à vaca sagrada, morre o irmão de Muthahi, em um fragmento que dá conta da decadência da língua suaíli: “En el corazón de la guerra, el swahili hablado por nuestros hermanos se había convertido en una lengua incomprensible”. Chega-se então, com a morte do irmão e o fim da fábula, ao momento em que se desvenda a situação de narração dessa história: uma exposição organizada por um antropólogo inglês que queria mostrar a beleza da morte, “la agonía en las salas de cuidados intensivos”. A morte exposta de um clã que desaparece, transformada em objeto da antropologia e da arte. Em seguida, velho, fala a um documentarista e lembra dos tempos em que sua cidade era próspera: havia restaurantes, hotéis e os nativos serviam os homens brancos, comiam seus restos. Depois veio a guerra e tudo desapareceu. Mas o relato termina em um fragmento de menos de quatro linhas cujo mote é a necessidade de continuar, necessidade soprada ao velho que caminha no deserto pelos espectros, por seus irmãos mortos. Mesmo depois da catástrofe, é preciso continuar.  A novelita termina então como os filmes de Chaplin, com a imagem do caminho que é preciso percorrer. Mas à diferença do clown dos Tempos modernos, os de Manigua não têm nenhum caráter, descendentes que são da estirpe dos Macunaíma. Mesmo porque, conforme o fragmento 6, citado no início desta resenha, só a antropofagia os une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.


Ilha de Santa Catarina, outono de 2010

  

(Actualización abril-mayo 2010/ BazarAmericano)

 


9 de julio 5769 - Mar del Plata - Buenos Aires
ISSN 2314-1646